Da Escócia, com amor (excerto 3)
Fevereiro 27, 2023
in - Histórias de uma Mente Fragmentada
A festa decorria com animação. Vários grupos tinham-se formado, conversando e rindo, de copo na mão, preenchendo com o seu burburinho a vasta sala.
Achei curioso que não houvesse catering. Eu supunha que, quando alguém atinge um certo status social e financeiro, as festas dadas seriam sempre com recurso a serviços de catering – com direito a Chef e tudo. Mas ela não fazia nada da forma esperada ou habitual. A fama e o dinheiro não a mudaram. É certo que tinha uma grande casa com vastos jardins, mas tudo tinha o seu toque pessoal. A simplicidade e a descontracção que emprestava a tudo o que fazia, desde os mais pequenos gestos e trejeitos até às conversas mais intensas, traduziam uma pessoa segura de si, com uma identidade bem resolvida e sem nada a provar a ninguém.
Fazia tudo com simplicidade sim, mas de forma precisa. E como não tinha tempo para cozinhar para tantos convidados – embora as más-línguas alvitrassem que a verdade é que era uma péssima cozinheira – desafiava cada um dos convivas a trazer algo de comer, sem restrições de ementa, doce ou salgado, caseiro ou comprado. Das bebidas ela se encarregaria. Fácil, descomplicado, prático.
Isto fazia das suas reuniões eventos muito familiares, com uma mesa recheada de acepipes caseiros. Traziam pratos verdadeiramente únicos e deliciosos, receitas de família na sua maioria, petiscos aprendidos com a avó ou a mãe. Outros traziam as suas últimas inovações, descobertas na internet e talentosamente executadas. Nenhum esforço era poupado para agradar a Margot. Era até divertido observar como alguns competiam entre si pelos elogios dela aos seus cozinhados!
Os menos talentosos culinariamente (ou talvez mais preguiçosos), optavam por trazer pão ou sobremesas de uma qualquer pastelaria de excelente reputação – geralmente da preferência pessoal da anfitriã, já que ninguém ousava desapontá-la e todos se esforçavam por agradar-lhe, tal era a admiração e estima que inspirava em todos que conhecia.
Dada a gama internacional dos seus convidados, a variedade gastronómica era vasta, originando a troca de receitas, suscitando conversas, promovendo interacções entre pessoas que nunca se tinham visto e descobertas surpreendentes entre as que até já se conheciam desde longa data.
Tudo isto fazia de Margot – quanto a mim – o supra-sumo dos anfitriões: prática e descomplicada, sim, mas acima de tudo profundamente astuciosa.
Quando recebi uma chamada sua a convidar-me para uma das suas célebres festas, fiquei imediatamente entusiasmada. “É só uma pequena reunião de amigos que faço todos os anos, tudo muito informal e descontraído! Eu sei que deves ter algo muito mais entusiasmante para fazer, mas gostava imenso que viesses!” - disse-me, na sua voz acolhedora e sincera.
É evidente que aceitei o seu convite. Mas tal colocou-me um problema: o que haveria eu de cozinhar? Tinha de ser algo tipicamente português e, claro, que se mantivesse igualmente apetitoso depois de frio.
Primeira ideia óbvia: bolinhos de bacalhau! Primeiro obstáculo: não sei fazer!
Dei voltas e mais voltas a pesquisar na internet e a única coisa que me pareceu adequada foram pataniscas – de bacalhau ou de outra coisa qualquer. O único senão era que – como qualquer português sabe – as danadas das pataniscas são boas é quentinhas!
Liguei a Margot e perguntei-lhe com todo a desfaçatez – que nunca me caracterizou, mas que começava a ser cada vez mais habitual em mim – se podia utilizar a sua cozinha para terminar o prato que pretendia levar.
- É claro que sim, querida! Mas ouve, tens a certeza de que queres ter esse trabalho todo durante a festa? Não te maces, traz qualquer coisa do supermercado!
- Garanto-te que não dá trabalho nenhum, eu levo a massa feita e, se me permitires, uso a tua cozinha para finalizar o petisco.
- Eu preferia que não tivesses tanto trabalho, mas por mim é como quiseres! A minha cozinha é toda tua!
- Obrigada, querida! Vais ver que vais adorar, é uma iguaria tipicamente portuguesa, do mais delicioso que há! – o arrojo da afirmação a fazer pendant com a desfaçatez anterior: cada vez me reconhecia menos!
Quando cheguei à casa de Margot – com a minha enorme tijela cheia de uma massa bem crescida de pataniscas de bacalhau entre braços – os convidados já presentes olharam com estranheza aquele conteúdo, surpreendendo-se ainda mais ao verem-me levá-lo de forma decidida para a cozinha em vez de o pousar na mesa da sala, como todos o tinham feito à chegada.
Entrei na cozinha onde Margot se encontrava, e assim que me viu soltou um grito de surpresa.
- Valha-me Deus! Mas o que trazes tu aí? Parece delicioso! Posso provar? É doce?
Ri-me da sua excitação infantil, própria da sua natureza hedonista.
- Calma, isto tem de ser cozinhado, assim não presta! Não sejas impaciente!
- Está bem, suponho que posso esperar. Mas o que mais trazes aí?
Margot apontava para o saco que eu trazia a tiracolo – limitei-me a retirar o seu conteúdo como resposta: a minha frigideira e a minha espátula preferidas.
- Eu tinha isso tudo, não precisavas de trazer nada!
- Sabes, uma boa cozinheira adapta-se a tudo; mas eu como sou apenas mediana, tenho de usar os meus utensílios, senão já não sei cozinhar!
Margot soltou uma gargalhada sonora, enquanto servia dois copos de vinho branco pousados no balcão.
- Ah, já me esquecia do meu último artigo! – tirei do saco o meu avental com bordado de Viana, que era da minha avó. Na verdade, nunca o uso na cozinha, tenho sempre medo de o estragar. Mas achei que a ocasião exigia a cerimónia e a beleza que o avental da avó ostentavam.
- Oh! É lindíssimo! Nunca vi um bordado assim!
- Era da minha avó. Foi bordado pelas suas próprias mãos.
- É simplesmente divino! Adoro as tuas coisas de Viana!
Rejubilei num brio silencioso, porém sorridente. Tenho sempre vaidade da minha terra.
O sentido prático de Margot não me deixou pairar no orgulho vianense durante muito tempo.
- Bom, agora só te falta um ajudante. Espera aí que eu vou já buscar um voluntário! Um que ainda não tenha começado a beber, de preferência!
Foi-se embora a gargalhar ruidosamente, antes que eu pudesse dizer-lhe que não precisava da ajuda de ninguém.
Encolhi os ombros e comecei a preparar tudo – e a decifrar o funcionamento do fogão topo de gama (e visivelmente por estrear) de Margot. Ela voltou, poucos minutos depois, puxando alguém pela mão.
- Et voilà! Madame, eis o seu sous-chef!
Voltei-me para ela a sorrir, pronta a dizer que não era preciso incomodar ninguém, quando vejo o rosto mais sorridente da Escócia a fitar-me.
- Sean, apresenta-te e porta-te bem! – disse Margot piscando-me o olho enquanto deslizava agilmente pela porta da cozinha afora, voltando para junto dos restantes convidados.
- Chef, apresento-me às suas ordens! – disse Sean, fazendo uma vénia espalhafatosa.
O meu coração explodiu-me no peito. Devo ter corado, mas nem me apercebi. De espátula na mão e de avental por apertar, fiquei a olhá-lo sem conseguir reagir.
“Fala idiota! Diz qualquer coisa, cretina!” – pensei.
Sorri desajeitadamente.
- Bom, agradeço ao voluntário. Não era preciso… - a minha voz escoou-se pela minha garganta abaixo, e parecia decidida a não voltar à superfície. A desfaçatez e o arrojo tinham-me abandonado vergonhosamente.
Ficámos uns segundos parados no meio da cozinha, a olhar um para o outro, sem falar. Eu, com duas maçãs vermelhas no rosto; ele, cintilando no olhar o mais profundo azul que eu alguma vez havia visto em toda a minha vida.