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Ana Pinto

Blog Literário

Ana Pinto

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Da Escócia, com amor (excerto 5)

Março 23, 2023

In - Histórias de uma Mente Fragmentada

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Ele achou que tinha impreterivelmente de me compensar pela sua “patética prestação” – nas suas próprias palavras – como sous-chef durante a festa de Margot. Eu não achei o mesmo, mas não o contrariei.

Na noite da festa não havia, de facto, muito a fazer, a necessidade de um ajudante era por demais exígua. Assim, a única coisa que me ocorreu para justificar a sua solícita ajuda foi provar e avaliar o tempero das primeiras pataniscas de bacalhau a saírem da frigideira – controlo de qualidade que desempenhou com a solenidade e o rigor que a tarefa não exigia! -, e a preparar o seu devido empratamento, dando-lhe liberdade total para escolher o recipiente. Sugeri que uma travessa de servir ou um prato grande seriam uma opção adequada. Mas ele considerou que lhes faltava cerimónia e dignidade face ao manjar que exibiriam. Decididamente, ele estava a levar a sua incumbência mesmo muito a sério.

 - Quando me comprometo com alguma coisa, entrego-me de corpo e alma! Comigo é assim, ou tudo ou tudo! – declarou, tão enfático quanto cómico, enquanto abria e fechava portas dos armários da imaculada cozinha de Margot.

- Quão escocês da tua parte. – trocei.

- De facto… - respondeu distraidamente, parando no meio da cozinha de mãos impacientes nas ancas e olhar frustrado por aquela busca pelo recipiente perdido. Mas foi só por um instante, logo recomeçou, atacando os armários sob as bancadas. Um escocês nunca desiste.

Após muito vasculhar, decidiu-se por um prato de pé alto de cristal, que ergueu tão orgulhosamente como se tivesse descoberto o próprio cálice sagrado.

 - A-ha! Eureka! – gritou vitorioso.

O seu entusiasmo desencorajou-me completamente de lhe dizer que era mais indicado para bolos e tartes. Mal consegui disfarçar o riso enquanto ele empilhava animadamente as pataniscas numa periclitante e escorregadia pirâmide dourada naquele prato majestoso. Quando as levou para a mesa da sala, empunhou o receptáculo como se de um desfile real se tratasse, ostentando o prato arriscadamente acima da sua cabeça numa só mão e executando meneios corteses no ar com a outra. Quase era possível ouvir o som do alaúde na corte!

De repente, o inevitável deu-se: enquanto olhava, distraidamente, a audiência, exibindo um sorriso de vaidoso gáudio, inclinou o sumptuoso recipiente um pouco demais e uma torrente de pataniscas começou a rolar e a tombar em cascata na sua cabeça. O riso que estalou entre os convivas retumbou pela sala como um trovão!

As poucas pataniscas que sobreviveram incólumes mal chegaram para a cova de tantos dentes ali presentes. A vergonhosa decepção era evidente no seu rosto. O meu evidenciava o riso que já não consegui conter.

Por isso insistiu em compensar-me, cozinhando para mim um almoço em sua casa. Obviamente, não me fiz de rogada. A possibilidade de o encontrar de novo, desta feita num ambiente mais tranquilo e íntimo, ressuscitou a adolescente em mim, enchendo-me o peito de adrenalina e a barriga de borboletas.

Quando cheguei à morada que me indicou, deparei-me com uma pequena casa campestre com um imenso terreno verde à sua volta. Embora recuperada com detalhes modernos, a cuidada preservação dos traços antigos era visível em toda a sua estrutura.

Bati à porta principal, mas ninguém apareceu. Dei a volta pelas traseiras e encontrei outra porta, mas esta envidraçada – a da cozinha. Espreitei pelos vidros e vi-o atarefadíssimo, de avental posto e faca de chef na mão, cortando algo com óbvia e surpreendente destreza numa tábua de cozinha. Sorri. A sua concentração era tão profunda e tão organizada que fazia duvidar que aquela criatura desajeitada a despejar petiscos na própria cabeça alguma vez tivesse existido!

Bati no vidro com a ponta do indicador direito. Ele levantou de imediato a cabeça e voltou-a na minha direcção. Sorriu ao ver-me e, limpando as mãos ao avental, veio abrir-me a porta.

Assim que entrei, senti no ar o aroma doce de algo delicioso a cozinhar no forno.

 - A sobremesa já está quase pronta. – disse, indicando orgulhosamente com a cabeça a tarte aromática que cozia no forno. - O almoço ainda vou começar a fazer. Pega num avental desse cabide e vem ajudar-me. Hoje o Chef sou eu! – a genuinidade simples da sua boa disposição era contagiante. Tirei o casaco e coloquei o avental rapidamente. Enquanto lavava as mãos, perguntei-lhe:

 - E qual é a ementa de hoje, Chef?

 - Risotto de cogumelos! Gostas?

 - Eu sou portuguesa, gosto de tudo, laddie! – gracejei, no meu sofrível sotaque escocês, que imediatamente me arrependi de imitar. Ele, generosamente, limitou-se a sorrir, sem o menor vestígio de censura no seu rosto. Achei que o melhor era continuar a falar e fazer de conta que aquele instante embaraçoso nunca tinha acontecido. - Risotto nunca cozinhei. É complicado?

 - Nah, é muito simples!

Começou a explicar-me a receita passo a passo, reiterando que a reputação de complexidade da confecção do risotto era bastante exagerada. À medida que ele ia falando, o som das suas palavras foi sendo paulatinamente suplantado pelo azul vítreo dos seus olhos. A minha atenção foi desviada para aquele mar plácido e reluzente. Mais uma vez, o cintilar cerúleo daquele olhar levava a melhor de mim, transportando-me para uma dimensão feita de calor e aconchego, contrariando em absoluto a frieza que a tonalidade pudesse eventualmente sugerir.

Nadava sem cansaço nem esforço naquele mar de deleite, quando me apercebi que não tinha escutado uma única palavra que o seu detentor dissera. As minhas faces ficaram, repentinamente, visivelmente ruborizadas, não sei se mais pelo pudor do devaneio que me assaltou ou pelo constrangimento de o não ter ouvido. Ele tinha parado de falar e parecia esperar uma resposta. O coração caiu-me aos pés. Não sabia como disfarçar, como remediar a situação. Não remediei: optei pela honestidade.

 - Desculpa, mas não ouvi tudo o que disseste, distraí-me e…

 - Não, não. Eu é que peço desculpa. Estou para aqui a falar da receita e aborreci-te evidentemente… - ele remexia o conteúdo fumegante do tacho com visível frustração.

 - Não, não é isso! – exclamei, sem sequer pensar no que diria a seguir. – Distraí-me a olhar para os teus olhos, nunca vi um azul tão intenso … - a voz sumiu-se na minha garganta, e o meu cérebro deu uma palmada na minha própria testa pela confissão absolutamente escusada e embaraçosa. O cérebro geralmente é usado para pensar.

Sem levantar os olhos do tacho, deixou que um sorriso se desenhasse no seu rosto. E foi a vez dele de corar, ainda que apenas ligeiramente.

 - Bom, nesse caso – disse, olhando-me de fugida, e sem parar de mexer o risotto – estás perdoada. A tua distracção é perfeitamente natural… - o sorriso trocista que me lançou não disfarçou o leve rosado das suas faces e só serviu para acentuar o calor nas minhas. Sorri-lhe de volta, derrotada pelo encanto do seu charme tímido.

Depois do almoço e da sobremesa na acolhedora cozinha rústica, fomos tomar o café na sala - ladeada de estantes cheias de livros antigos e diversos artefactos relacionados com a cultura escocesa.

Aproximei-me de uma estante para observar melhor um livro que estava exposto com destaque.

 - É um livro sobre a vila. E sobre a minha família. – explicou.

 - A tua família?

 - Sim, os meus antepassados foram os fundadores da vila, que tem o nosso nome.

 - A sério? Bem, que origens tão nobres tens!

 - Oh sim, uma longa e antiga linhagem… de agricultores!

 - Latifundiários, sem dúvida.

 - Não. Eram apenas camponeses. É um clã muito pequeno e nada entusiasmante, na verdade.

 - Fala por ti, os meus antepassados, que eu saiba, não fundaram nenhuma vila! Acho muito entusiasmante mesmo!

 - Vou mostrar-te uma coisa aqui no livro da vila. – Pegou no volumoso compêndio e folheou-o até encontrar a página pretendida. – Mas primeiro, porque não quero que te distraias enquanto falo… - Virou-se de costas para mim e agarrou em qualquer coisa do topo de uma das estantes que não percebi o que era. Quando se voltou, tinha uns escuros óculos de sol postos. E sorria, orgulhoso da gracinha.

 - Olha a piada que tu tens! – disse-lhe, um pouco para disfarçar o meu regressado embaraço, pois pensei que o incidente da minha “distracção” na cozinha já tivesse sido esquecido. – Mas sabes, não te adianta de nada, porque agora fico distraída com o teu sorri… - não terminei a frase, apercebendo-me da minha tremenda e reiterada estupidez.

Cada vez metia mais os pés pelas mãos. Mais parecia uma miúda inexperiente do que uma mulher adulta. O meu cérebro revirou os olhos, derrotado, e sem perceber afinal para que me servia, já que, obviamente, eu não lhe dava uso!

Ele tirou os óculos lentamente. Já não sorria e olhava-me como se quisesse perscrutar-me a alma sem dizer uma palavra. E fê-lo, de facto. Durante uns longos segundos, senti-me prisioneira da sua atenção e qualquer esforço de fuga seria inútil. Por isso, não me esforcei. O meu sorriso apagou-se do meu rosto e engoli em seco. Devagar, tentei reagir e escapar ao assalto daquele olhar, desviando-lhe o meu. Até que, por fim, a Terra retomou a rotação e o Tempo regressou ao seu ritmo normal.

 - O que me querias mostrar? – perguntei, esperando quebrar aquele embaraço e fazer fluir de novo a conversa.

Ele abanou a cabeça ligeiramente como se estivesse zonzo e precisasse de recuperar o equilíbrio. Era uma reacção natural: sentimo-nos sempre algo confusos quando a Terra recomeça a girar.

 - Isto. Ou melhor, este: o meu antepassado fundador da vila.

Segurei na outra metade do enorme livro para poder ver melhor o retrato do cavalheiro em questão. Tratava-se de um robusto Laird escocês, com umas longas melenas loiras, olhos azul-cobalto, trajado a rigor no seu magnífico kilt. Empunhava uma espada numa mão, enquanto a outra segurava um largo escudo.

 - Mas… é a tua cara, sem tirar nem pôr! Se te vestisses assim e tivesses o cabelo mais comprido, eras capaz de convencer muita gente que os fantasmas existem!

 - Bem, todos os anos temos uma encenação de uma batalha que houve aqui. E eu participo sempre, na figura deste meu antepassado.

 - Gostava imenso de ver!

 - Terás de esperar, é só no Verão.

 - No Verão? Os figurantes devem ficar com imenso calor se têm de vestir indumentárias pesadas como estas.

Ele riu sonoramente. – Calor? Só se for em Portugal! Não aqui na Escócia!

A minha identidade nortenha ficou subitamente abalada pela constatação óbvia de que afinal, num âmbito geográfico mais alargado, eu sou mais do Sul do que do Norte.

 - Mas posso mostrar-te o local onde tudo se passa. É lá em baixo, à beira do forte. Conheces?

 - Não, ainda não fui lá.

- Então vamos. Subimos às torres de vigia e terás à tua frente a paisagem mais deslumbrante que já viste na tua vida. Depois dos meus olhos, é claro… - Sorriu novamente, ousando a malícia. Eu ousei sorrir-lhe também. E depois, para compensar tanta ousadia, coramos os dois.

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