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Ana Pinto

Blog Literário

Ana Pinto

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Da Escócia, com amor (excerto 4)

Março 09, 2023

In - Histórias de uma Mente Fragmentada

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Hoje, ao passar por uma montra na rua, olhei distraidamente para o meu reflexo e não me reconheci. Parei, estupefacta, a olhar o meu rosto transmutado. Pensei que, claramente, devia ser o efeito de uma ilusão óptica qualquer, ou talvez a influência da cor violácea do guarda-chuva que empunhava, ou talvez ainda o tom cinzento do dia chuvoso, ou talvez tudo isto, ao mesmo tempo, tenha dado origem àquele rosto fantasmagórico e lúgubre reflectido naquele vidro.

Dir-se-ia ser a face de um cadáver. Só que eu ainda não morri. Ainda respiro, ainda me mexo, ainda caminho, ainda existo. Mas o reflexo não mentia: era de uma morta que se tratava.

Tentei, já não sei bem durante quanto tempo, esquecer as memórias que invento todos os dias de uma vida que não tenho.

Tentei, com todas as minhas forças, enfrentar – desperta – o quotidiano da minha existência factual.

Tentei, contrariando toda a minha vontade de fuga, regozijar-me por esta vida que, afinal, é boa, é segura, é isenta de sofrimento físico – e isso é tão mais do que tanta gente infeliz e sofredora neste mundo poderá alguma vez ter.

Porque não viver de uma forma mais agradecida, mais apaziguada, se tenho tanto do pouco que muitos sonham diariamente alcançar?

Tentei. Esforcei-me todos os dias por tentar. Lembro-me que cheguei a acordar a sorrir, a cantar pela casa ou pela rua, a maravilhar-me com um arco-íris aqui ou uma nuvem cor-de-rosa acolá.

Tentei ter doçura. Tentei ter paciência. Tentei ter força. Houve um momento em que senti, com toda a sinceridade, que estava a conseguir. «Daqui a nada – pensei – saberei quem sou. Falta pouco…» - acreditei. «O que é preciso é fomentar a paz interior e ser-se grato» - decidi - «deixar o acessório e apreciar o essencial. Assim, esta plumagem de inquietações desnecessárias irá, com certeza, tombar, pena por pena, e a descoberto ficará quem realmente sou. Apreciar a simplicidade essencial dos dias!» - decretei.

Todos os dias agradecia alguma coisa. Se as nuvens escureciam o céu, agradecia a chuva. Se o sol brilhava, agradecia o seu calor. Se a temperatura arrepiava, agradecia ter um casaco quente para vestir e uma casa aquecida para morar.

Agradecia as estrelas, agradecia as nuvens, agradecia as pessoas que me amavam, agradecia as que não gostavam de mim; agradecia até ter lágrimas para chorar.

Mas as lágrimas começaram a ser mais frequentes do que os sorrisos, pela manhã. E depois, durante a tarde, também. O coração, que durante algum tempo pareceu ser leve como um balão, começou a cair, pesado, moroso, dorido.

Inevitavelmente, o sol e a chuva, as nuvens ou as flores deixaram de ser motivo de agradecimento ou sequer dignos de atenção.

As portas que tentei abrir a tanto custo, acabaram por emperrar a meio, e os ventos dos meus ancestrais pensamentos sombrios fizeram-nas fechar de novo, com estrondo.

Uma mão cheia de boas intenções não chega para me fazer sair desta sinistra caverna que é a minha alma. Eu tentei. Mas não posso escapar quando a prisão está dentro de mim.

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