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Ana Pinto

Ler. Partilhar. Sentir.

Ana Pinto

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Beijo de passarinho [Parte I/III]

Junho 29, 2023

In Ode Aos Meus Mortos

Telefone preto.jpg

Ouvi o irritante trinado do telefone do hall, e, abrindo só um olho, virei a cabeça na direcção do relógio digital pousado na mesinha de cabeceira: os algarismos vermelhos digitavam as 3 da manhã. Pensei que só podia ser um engano – quem é que liga a uma hora destas? -, e, rosnando a minha mal desperta indignação, rolei para o outro lado da cama, voltando a adormecer daí a pouco. Achei que teriam passado menos que uns instantes quando ouvi o bendito telefone a soar de novo, estridentemente.

Grunhia uma qualquer imprecação maldisposta sobre a insistência mal-educada de quem telefonava àquelas horas, quando me dei conta que afinal a luz do dia já invadia as frestas da persiana.

Sentei-me na cama e esfreguei a cara, tentando que o gesto me despertasse, sem grande sucesso. De súbito, a porta abriu-se e a mãe entrou, e com ela a claridade do resto da casa - ainda assim insuficiente para dissipar a sombra que ela trazia no olhar. Controlou nas mãos entrelaçadas a tremura que não conseguiu dominar na voz:

 - A Avó m… faleceu esta madrugada.

Acordei de imediato. Olhei-a sem saber o que dizer, de olhos espantados e boca estupidamente entreaberta. Ela esfregou as mãos uma na outra nervosamente, olhando à volta do quarto, procurando que o vazio abstracto que sentia se objectivasse numa factualidade essencial qualquer. Poisou os olhos aleatoriamente na janela e acrescentou:

– Abre as persianas e a janela, e deixa o quarto arejar.

Acenou um repetitivo sim com a cabeça - para anuir, talvez, às questões que invadiam a sua mente, e não porque eu lhe tivesse feito alguma pergunta – e saiu, deixando a porta aberta.

A Avó Casimira – rebaptizada de Mimi pelo primeiro neto, inábil demais, pela sua pouca idade, para conseguir pronunciar as complicadas sílabas daquele extenso nome – era a doçura personalizada. O diminutivo assentava-lhe na perfeição, terno e breve, como um doce piar de ave.

Ela era a única Avó da família. Nunca conheci mais nenhum: os restantes três avós tinham falecido muitos anos antes de qualquer neto nascer. Ela era a única sobrevivente daquela altura de ramagem da árvore familiar, e a primordial guardiã das recordações e vivências que compunham a histórica memória do nosso pequeno colectivo. E por não haver quem a pudesse contradizer, sempre que a sua memória ou conhecimento dos factos não chegavam para estucar todas as ocas omissões, inventava o seu bocadito, e daí não vinha grande mal ao mundo. Muito pelo contrário: as histórias da Avó Mimi podiam ter alguns laivos de imaginativa ficção, mas nunca de excessiva fantasia. “Não foi, mas podia muito bem ter sido!” – proclamava com o seu ar decidido, como um melro de irreverente bico levantado, sempre que alguém ousava questionar se aquela história teria ocorrido mesmo assim como ela a contava.

A Avó Mimi era assim, feita de inabalável postura e de inexcedível doçura: com a primeira, livrava-se de todos os potenciais ladrões do seu inestimável sossego; com a segunda, recheava dos seus célebres beijinhos todos que amava, em especial os netos, tão leves e carinhosos que mais pareciam delicadas bicadinhas de passarinho.

Era senhora de uma estatura que pouco rivalizaria com a de um duende, contudo a sua atitude perante o mundo – largamente fruto da sua avançada experiência e sábia idade – era tudo menos pequenina ou frágil, como a sua diminuta figura o faria supor.

Sempre vestida de preto, usava um carrapito bem penteado na alva cabeça, que, quando saía à rua, levava coberta com um lenço de musselina da mesma ausência de cor do resto da sua invariável indumentária. As modestas sabrinas de tacão baixo – que a tecnologia eventualmente modernizou para uns cómodos sapatos de sola de borracha – com que calcorreava a cidade toda, uma vez chegada a casa, eram prontamente substituídas por uns chinelos ortopédicos, mas dos bons, comprados na farmácia e tudo, única extravagância a que se permitia. Consigo, não gastava quase dinheiro algum da sua modesta pensão. Do pouco que tinha tirava muito, para presentear os oito netos e ajudar, como podia, as quatro filhas, duas delas viúvas.

Era com as filhas que vivia, em regime de pousio rotativo, umas vezes com uma, outras temporadas com outra, até o calendário anual se preencher justamente distribuído pelos quatro fogos.

Mas o Natal a Avó Mimi fazia questão de o passar connosco – na casa da filha mais nova – e a ela aqui se juntavam as tias, os tios e os primos. É claro que essa decisão foi da sua inteira responsabilidade, pois, apesar de amar todas as suas filhas com igual devoção, o seu coração de mãe nutria um afecto particular pela filha mais nova, embora ela o negasse a pés juntos face às provocações das outras três filhas. As tias tinham um gosto especial em irritar a Avó Mimi, zombando das suas atenções à minha mãe, apenas porque se divertiam em vê-la, afogueada, a negar a sua manifesta delicadeza de trato e alguma falta de objectividade em tudo quanto à filha mais nova dizia respeito. Mas nada que as próprias não fizessem também pela mana mais piquéna – alcunha que a minha mãe ainda enverga no seio da sua família de origem, apesar das rugas cinquentenárias bem marcadas no seu rosto. E de nada lhe vale protestar – ela bem tentou ao longo de tantos anos – porque ela será sempre a piquéna, dito calorosamente assim, na amena pronúncia trasmontana.

Esse tratamento especial que a minha mãe recebia tinha uma pragmática e quase trágica razão de ser. Em criança contraiu uma pneumonia aguda que quase a levou deste mundo, com uns pequeninos quatro anos. “Deus não ma quis tirar, pelo já muito que me tinha tirado antes, e pelo ainda pouco que ela tinha vivido!” – dizia a Avó, limpando os olhos molhados, sempre que nos contava essa história. Desde então, a menina foi o centro das atenções e cuidados de toda a família, da qual já não faziam parte nenhum dos seus elementos masculinos: o avô partira, vítima de um ataque cardíaco fulminante, dias antes da filha mais nova nascer, e os dois primogénitos – gémeos – sucumbiram poucas semanas após o seu nascimento, de causas que na época eram difíceis de apurar.

As três filhas mais velhas da Avó Mimi nunca deixaram a aldeia natal, e era lá que ela passava a maior parte do ano. Em meados de Outubro, fazia a sua malinha, apanhava dois autocarros e um comboio, e chegava ao nosso domicílio citadino. Carregada de presentes e das infalíveis iguarias da aldeia – a aromática broa de milho da tia Ana, a suculenta bôla de carne da tia Deolinda, e as doces cavacas da tia Emília, cuja evocação na memória sensorial me faz salivar mais que o cão de Pavlov!

Já a caçula, quando casou, foi viver com o marido para a cidade grande mais próxima, mas ainda assim bastante longínqua daquele recanto remoto, alojado no montanhoso coração do país. O percurso da sua vida adulta trouxe-lhe mais dois cruéis infortúnios: das filhas gémeas, só eu sobrevivi ao doloroso parto, e um acidente de viação roubou−lhe precocemente o marido. O meu pai morreu quando eu tinha sete anos mal acabados de completar. Lembro-me como se fosse hoje: as minhas tias e a Avó Mimi vieram mal souberam da fatídica notícia, trazendo sacos ainda mais carregados dos habituais acepipes, e os braços ainda mais prontos a estreitarem-se com cuidadoso desvelo à volta da minha mãe. E à minha também. Decidiram tudo, organizaram tudo, ampararam tudo. Depois do funeral, as tias regressaram, mas a Avó Mimi ficou connosco durante mais algum tempo. “Ide andando, logo abalarei. Preciso de olhar pela piquéna por mais uns poucos de dias.

A partir de então, a Avó decidiu: Páscoa na aldeia, Natal na cidade - a primeira, onde ainda era celebrada a primor e rigor de outros tempos; o segundo, onde o brilho urbano emprestava outra magia à quadra. Seria mais simples, e possivelmente mais lógico, que todas as ocasiões de celebração fossem passadas na aldeia, afinal duas pessoas viajam mais leves que quatro mulheres, sete crianças e dois cônjuges, mas contra a palavra da Avó Mimi ninguém se atrevia.

Além disso, a nossa casa tinha espaço de sobra para todos – os planos credulamente optimistas dos meus pais previram a necessidade de uma habitação com muitos quartos, mas apesar de o destino lhes ter feito essa perversa rasteira, a dimensão da casa acabou por ser útil às frequentes visitas familiares, nas épocas festivas e não só – sempre que as saudades apertassem mais no peito, ou, simplesmente, sempre que a vontade de laurear pelas lojas da cidade lhes inquietasse as carteiras.

Portanto, eu e a mãe não passávamos muito tempo sem que alguma delas ou todas elas nos fizessem uma visita, mais ou menos prolongada, à parte das duas visitas pré−programadas no calendário.

Lembro-me, em particular, de uma vez em que a tia Emília nos visitou e ficou em nossa casa por mais de um mês. Eu tinha à volta de 12 ou 13 anos, e, mal-grado os seus farsantes esforços, já percebia pelo tom de conversa entre ela e a minha mãe que algo de sério se estaria a passar. [...]

 

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