Dia Perfeito
Quotidianos Paralelos
Fevereiro 29, 2024
Hoje o dia tinha tudo para ser perfeito.
Quando acordei e abri as persianas, o sol brilhava redondo no azul impoluto, o ar era fresco, as flores no jardim do vizinho abertas à promessa de Primavera próxima, as aves todas a concordarem com elas.
Quando sequei o cabelo, este caiu leve e livre, sem qualquer vestígio de electricidade a descompô-lo na juba indomável habitual. Sabemos que o dia promete ser bom quando o cabelo nos obedece!
As torradas do pequeno-almoço também saíram bem: no tom certo de ouro, crocância perfeita sobre um miolo macio, em vez das meias solas secas e quase carbonizadas dos outros dias. Até a manteiga se enroscou num formoso rolinho ao suave deslizar da faca no seu corpo, derretendo-se graciosa ao calor aconchegante do pão.
Quando me sentei a comer, olhei de soslaio o telefone, mas não me incomodei – “É cedo. Muito cedo ainda...”.
Na rua, na farmácia, no café, e até, pasme-se!, no trabalho, as pessoas sorriam e pareciam estar todas a viver da mesma boa-disposição, do mesmo ar fresco, da mesma calorosa luminosidade.
Em dias assim, parece que o mundo vai, por fim, deixar de girar à toa e entrar nos eixos.
Em dias assim, é quase impossível não encher o peito mais de esperança do que de oxigénio.
Olhei de novo, sem pensar muito, o meu telefone ainda cheio de silêncio, ainda vazio de vontade. O dia ia a meio, e o meu entusiasmo baixou meio-tom.
Não pousei mais o telefone, até quase fazer parte da minha mão, dos meus olhos e da minha ansiedade.
No caminho de regresso, a luz que o dia ainda tinha pareceu-me menos bonita. As primeiras andorinhas do ano, atarefadas no seu rodopio, não me emocionaram como de costume.
Sento-me uns momentos no chão, ainda morno do sol, da minha varanda, a degustar o lusco-fusco a cair, um copo de vinho rosé, e uma fatia de amargura.
O dispositivo quieto, mudo e feio, indiferente à beleza de um entardecer de quase-Primavera.
Uma gota cai na tijoleira, seguida de mais duas, até, de repente, serem muitas, demasiadas para ficar no chão a contá-las.
Levanto-me, vou para dentro, fecho a porta de vidro. Os tons de vermelho do sol a pôr-se foram vencidos pelo cinzento das nuvens.
Olho o telefone, parado na minha mão. Nem um som de alarme, nem uma notificação de alerta, nem uma chamada perdida, nem uma mensagem não vista.
A chuva despedaça-se sem piedade contra a vidraça. Desço a persiana, corro as cortinas, embrulho-me na manta, e fecho os olhos. Desligo o telefone e a esperança.
Eu sabia. Ainda é muito cedo para a Primavera.