Cisma
Junho 13, 2023
in Quotidianos Paralelos
«Desvio o olhar dos corpos velhos à minha volta. É como se desviasse o olhar do espelho de um futuro inefável, inevitável, na angustiada esperança de que seja eternamente adiável.
“Não serei eu, nunca serei assim” – penso, reconfortando-me na minha convicta sobranceria.
Porque, por muito que o romantizem, não há poesia nem beleza num corpo envelhecido – só rugas marcadas, dores articulares crescentes e sonhos irremediavelmente perdidos.
Não serei velha, recuso-me a sê-lo algum dia! Como poderia ser assim, esta massa de gente encolhida e disforme, a arrastar-se pelos passeios, a tactear de bengala na mão a comodidade de piso que nunca encontra. Não vou ser eu.
E o cheiro? Ah, o cheiro a mofo e a sabonete entranhado na pele murcha, como um perfume que já expirou o prazo há muito tempo! Insuportável! Eu nunca serei assim! Jamais o poderia vir a ser.
Os velhos caminham num tempo que é só deles, numa lentidão perdida nos anos e nas recordações, queixando-se a cada vagaroso passo dos ossos a ranger sob a pele ressequida e gasta, dos músculos frágeis e exauridos! Mas eu não, eu nunca me deixarei abater por queixumes de cinzentismo vagaroso!
Dizem, efabulando o que não passa de uma rota para um destino sem regresso, que as rugas dos velhos são marcas da história, que têm lições e experiências mil lá guardadas.
Dizem, querendo tapar com uma peneira esburacada um sol que já gastou o seu brilho em melhores dias, que aos velhos lhes sobra tanta sabedoria quanto aos novos falta humildade para com eles aprenderem.
Dizem que os velhos têm nobreza, que têm valor e merecem a dignidade que só o respeito intrínseco pelo próximo pode garantir.
Dizem que hoje já é preconceito e estupidez achar que alguém é incapaz ou menos útil por mera constatação da sua idade, mais ou menos provecta. Chamam-lhe “idadismo”, mais um “ismo”, desta época pródiga em virtuosidades baratas, que temos a todo o custo evitar.
Dizem isso tudo. Mas depois deixam-nos enfiados num lar, a tropeçarem sem autonomia nem identidade uns nos outros, para que terminem os seus magros dias na absoluta negação do que são. Do que dizem que eles são. E acima de tudo, do que foram.
Ser velho é deixar de ser: é a extinção lenta e inexorável da personalidade – como se eles fossem todos iguais, soldados pardos, expostos numa vacilante fila, a marchar para nenhures; é a conformidade rigorosa e fria a uma paridade opaca, sem direito à rebeldia, sem direito à diferença, sem direito a opinar.
Ser velho é não ser gente. É não ser mais que corpo e dados biométricos e clínicos.
Ser velho é subsistir num invólucro com um remetente anónimo e um destinatário desconhecido. Amachucado, amarelecido, e com uma carta dentro que ninguém quer ler...»
- Nunca serei velha...
- Como disse?
- Recuso-me a sê-lo...
- Lá está a Dona Celeste, outra vez a cismar alto! Vá, dê-me cá o braço para não cair daqui até ao refeitório...