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Ana Pinto

Blog Literário

Ana Pinto

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Rio

Da Escócia, com amor (excerto 7 e último)

Abril 11, 2023

In - Histórias de Uma Mente Fragmentada

Photo by Gabriela Palai from Pexels

Vivia de recordações vagas e de sentimentos gastos há já muito tempo. Tudo o que fazia era lamentar-me, suspirar por um dia-a-dia diferente. Um dia-a-dia que significasse de facto viver.

Perdida desde há décadas de mim própria, nem conseguia determinar como eu era ao certo. Lembrava-me da pessoa que tinha sido, mas eu sabia que esse não era o verdadeiro Eu. Não passava de uma reprodução gráfica, bem-sucedida as mais das vezes, representada perante um público exigente.

Mas o Eu de facto não tinha existência real. Eu sabia-O dentro de mim. Eu escutava o Seu doloroso estertor. Estava submerso, perdido, ferido, exangue. As palavras que debitava diariamente para esse público – crescentemente exíguo – iam soterrando-me cada vez mais, até, eu sabia, um dia nada restar de mim, nem uma lápide in memoriam na superfície da minha identidade.

Decidi que tinha de mudar. Tinha de partir, deixar tudo para trás, ir à procura de mim mesma. E tinha de o fazer rapidamente. Já não tinha palavras que convencessem ninguém de coisa alguma. As minhas palavras, mal cruzavam a atmosfera, tombavam como soldados extenuados no campo de batalha.

Foi então que recebi uma carta de Margot. A minha distante e quase esquecida amiga Margot. A excêntrica, - e avessa a todo o tipo de tecnologias modernas recentes ou nem tanto, pois ainda escrevia cartas em papel em vez de enviar e-mails ou sms – petulante e exuberante, generosa e obsequiosa, em tudo o que faz fabulosa, e ímpar Margot.

Conhecemo-nos há mais de vinte anos em Viana, durante as festas da Agonia. Era, à época, uma actriz em franca ascensão (embora ainda desconhecida do grande público internacional), e turista errante nas horas vagas, deambulando pelo mundo conforme o exigia a sua caprichosa natureza. Naquele Verão, os caminhos que resolvera percorrer trouxeram-na até Viana, e até mim.

Encontrei-a a vaguear pela Praça da República, logo após o desfile das Mordomas. Olhava para tudo com uma admiração infantil, o seu rosto diáfano de pré-diva a sorrir daquela algazarra de som e cores, de alegria e música, das gentes trajadas e dos turistas afoitos a fotografar tudo e todos, como se as suas vidas dependessem disso.

Eu estava sentada nos degraus do chafariz com as minhas amigas, todas nós envergando fatos de domingar e ouradas a rigor, quando aquele vulto atraiu a minha atenção no preciso instante em que ela prendeu a sua à minha figura de vianesa trajada. Dirigiu-se, decidida, a mim, e pediu-me para tirar uma foto comigo, no seu inglês impolutamente british, ao mesmo tempo que estalava os dedos no ar. Não sei bem de onde, logo surgiu um indivíduo de câmara fotográfica na mão, pronto a executar a sua ordem. Margot não fazia nada pela metade: não se daria nunca ela própria ao trabalho de matraquear uma câmara, tirando fotos a torto e a direito. Ela não. Ela exigia sempre o melhor, em quaisquer situações. Ela tinha o seu próprio fotógrafo profissional, pronto a registar os seus instantâneos turísticos ao mero estalar dos seus dedos.

Sorri, incrédula, perante esta insólita e caricata situação e anuí ao seu pedido. O fotógrafo disparou rapidamente uma série de registos, em que apenas ela mudava de pose, eu permaneci, imóvel, na típica pose vianesa de mãos na cintura e sorriso aberto – mas neste caso, quase a descambar na gargalhada, tão surrealmente divertido me parecia todo aquele aparato!

Ficámos amigas. Mostrei-lhe tudo em Viana, não só durante o decorrer das festas, mas semanas após terminarem. Levei-a a conhecer a região – sempre de fotógrafo à tiracolo – de lés a lés. Ficou apaixonada pelo verde luxuriante da vegetação, pelo azul magnético do mar, pelo dourado ameno dos campos de girassóis. Olhava para tudo como se fosse a primeira e a última vez que via aquelas paisagens. Tudo nela era assim – intenso e profundo, nunca nada pela metade.

«Faz-me lembrar a minha vila na Escócia.» - disse-me numa voz quase tímida.

«Escócia? Pensei que eras de Londres!»

«Tu e toda a gente. Eu vivo em Londres desde os meus 13 anos, mas nasci e passei a minha infância na Escócia. Tirando o calor escaldante deste sol, isto é tudo muito parecido. As danças, a alegria, as celebrações. Até a bonomia das pessoas daqui.»

Quando ela se foi embora, fiquei com um vazio no coração. Ela era tão intensamente exigente e extravagante que, na sua ausência, tudo parecia ter-se tornado terrivelmente cinzento e aborrecido. Ofereci-lhe um pequenino coração de Viana, em filigrana de prata.

«Para te recordares de Viana e de mim.»

«O teu coraçãozinho de prata! Vou guardá-lo sempre junto ao meu – embora o meu seja enorme e de ouro!» - disse ela, soltando uma das suas estridentes gargalhadas, ainda que no seu olhar eu pudesse ver um novelo de lágrimas pronto a desenrolar-se.

Nunca mais nos vimos, mas mantivemos o contacto durante largos anos. Quase sempre por carta. Ocasionalmente, por telefone. Até que os contactos foram escasseando, à medida que a sua carreira internacional crescia e se tornava cada vez mais recheada de êxitos.

Após tantos anos de silêncio, acreditei que ela me tivesse esquecido por completo. Até que um dia o carteiro tocou à porta com uma carta sua nas mãos.

Dizia, no seu imutável estilo dramático, que a vida de actriz a tinha consumido como uma chama consome o oxigénio. “Sinto-me extenuada, esgotada, cansada” afirmava. De certeza que tinha um dicionário de sinónimos à mão, enquanto escrevia!

“Preciso de renovar as minhas energias e preciso de gente salutar à minha volta para isso. A última vez que fui verdadeiramente feliz foi durante as semanas que passei contigo em Viana. Por favor, vem ver-me! Preciso de um rosto amigo e sincero junto a mim!”

Parecia estar, de facto, a passar por uma crise existencial. “Síncronas, mesmo à distância” – pensei, melancólica.

Tinha regressado à sua Escócia natal e convidava-me a visitá-la durante uns tempos – “ou pela eternidade que determinares, minha querida! Podes ficar no meu antigo apartamento que mantenho no centro da vila. É todo teu, se o quiseres!”

Aceitei o seu providencial convite. Parti logo no mês seguinte, sem olhar para trás e sem me despedir de ninguém. A Vida não iria continuar a passar-me ao lado. O meu Eu podia finalmente atrever-se a erguer-se das trevas onde estava mergulhado há décadas.

Quando cheguei à Escócia, pus um pé no chão e outro na minha Identidade – e entrei.

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