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Ana Pinto

Blog Literário

Ana Pinto

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Limpar a cache

Junho 19, 2023

in Quotidianos Paralelos

Foto de Ryan Arya no Pexels

A memória é um lugar estranho, tanto na capacidade como no funcionamento. Aquilo que armazena nem sempre é o que gostaríamos de manter na nossa selecção de recordações, e nem sempre nos surge de forma voluntária.

Não me lembro dele com assiduidade – não o permito. Aprendi a controlar o que a memória me apresentava todos os dias, recusando o acesso a pensamentos que me conduzissem inevitavelmente a ele.

Mas há estímulos que não controlamos, e os flashes repentinos acontecem quando menos os esperamos.

Lembro-me de quando não lhe resistia. Costumava suceder quando calhava de o ver a sair do banho, a cheirar a champô e a dia pronto a começar.

Observava-o de soslaio, desde o quarto, fingindo organizar a minha indumentária do dia. Na nossa intimidade cabiam portas abertas ao despudor tanto quanto armários fechados cheios de segredos.

Ele secava-se sempre sem grande rigor, arrastando atabalhoadamente a toalha do peito ao ventre, deixando-a repousar lassamente enrolada à volta da cintura.

As gotículas de água sobreviventes escorriam-lhe pela pele, aflorando os pêlos que encontrassem no seu caminho, erigindo-os num arrepio aqui e acolá, luzindo atrevidamente sobre um mamilo, ou acomodando-se clandestinamente no côncavo recato do umbigo.

Eu, como que hipnotizada por uma espiral em incessante rodopio, ia-me aproximando, absorta e excitada. Até ele se dar conta do meu olhar fixo no seu corpo, e me agarrar ao mesmo tempo que se livrava da toalha.

Hoje custa-me a crer que estas recordações tenham tido uma existência factual no tempo e no espaço, que não passem apenas de ideias que me assaltam e transtornam, nunca pelos melhores motivos, e raramente nas melhores ocasiões.

O que vivemos de mau com alguém nem sempre começou dessa maneira. Mas quando se dá o flip, quando tudo se vira do avesso, o bom que pré-existiu fica condenado a uma espécie de limbo existencial – porque, se tudo se tornou numa amarga e cruel amálgama de eventos dolorosos e até ultrajantes, tudo o que fora antes é posto automaticamente em causa. Foi tudo mentira, foi tudo um engano – foi tempo perdido e afecto desperdiçado.

Se tudo se resumisse apenas a isso, a vida seria bem mais fácil de digerir sempre que se tornasse mais ácida: ele era mau e eu não vi, ele mentiu sempre e eu não percebi, ele nunca me amou e eu não o senti. Lambem-se as feridas durante 5 minutos (ou 5 meses), e prometemos que para a próxima estaremos mais alerta.

Mas a realidade é mais complexa e as pessoas mais distorcidas do que isso. Albergamos o bom e o mau acomodados na mesma vizinhança dentro de nós, sendo capazes de ferir quem mais amamos e sermos atenciosos com alguém que nunca vimos antes e nunca mais voltaremos a ver.

Por isso que é tão difícil sobreviver e reencontrar o rumo para a salubridade mental depois de um relacionamento disruptivo, ou pelo menos tortuoso. Esteve sempre tudo lá, numa coexistência nada pacífica, talvez apenas menos óbvia aos olhos de quem não está pronto para ver. Houve amor e crueldade, houve desejo e repúdio, houve paixão e cólera, houve engano e perdão, houve ódio e conformismo. E no fim permanecem inúmeras recordações contraditórias, a palpitar na memória afectiva durante muito tempo.

A selectividade da memória é sempre imprevisível, nunca sabemos qual vai ser o conteúdo escolhido: vou recordar aquele momento em que discutimos e ele desapareceu durante semanas sem ninguém saber dele, ou vou-me lembrar de quando fizemos amor no velho Peugeot 205, numa viela deserta, e quase fomos apanhados por um GNR?

É também imprevisível na forma, e talvez seja aqui que reside a sua maior singularidade. Às vezes basta o premir inocente de um gatilho insuspeito para despoletar um rosário de emoções que deslizam desde as mais recônditas catacumbas da mente até à superfície da pele, subitamente vazia e a sentir imperiosa falta do que rejeitou.

Se há uma gota de água a escorrer numa superfície, seja pele ou espelho, a minha memória transporta-se da cache imediata ao armazenamento de longo prazo, transferindo para a minha consciência outro tempo e outro espaço, onde eu era outro eu, e ele o outro que sempre foi.

Sinto de novo o cheiro do seu champô, os arrepios na pele dele, os beijos a escorrer na minha pele, e a humidade a escorrer pelos azulejos. Oiço a sua respiração no meu ouvido, o meu arquejar em cadência. Sinto o desejo que foi um só.

Passo a mão pelo espelho e limpo a cache. Chega. Pelo menos por hoje, a memória fica limpa.

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