Lúcia ao contrário (excerto 5)
Especial de São Valentim
Fevereiro 14, 2024
Desisti de pensar – dei-me tréguas a mim mesma, apenas por um pouco. Considerei que o tempo que iria passar no estágio em Bruxelas, seria uma fase de suspensão, um hiato sem factualidade temporal, um não-tempo.
O amor estava fora de questão na minha vida, isso era ponto assente, mas aquilo não era bem, bem a minha vida, decidi. Era um período de pesquisa e desenvolvimento, de reunir informação e dados para memória útil futura. Era isso. Ou qualquer outra desculpa esfarrapada que servisse para eu passar todos os minutos livres com ele, no meu ínfimo apartamento ou na pensão barata onde ele se instalara.
Quaisquer ideias ou argumentos eram válidos, qualquer subterfúgio àquela espécie de lei marcial, que eu havia decretado desde o divórcio, era legítimo. Desde que me permitissem estar com ele sem grandes confrangimentos morais.
Apenas me impus uma condição: nunca lho diria. O Ian nunca poderia saber nada sobre o que eu de facto sentia por ele. Eu estava decidida a guardar os meus sentimentos bem longe dos seus olhos, bem longe dos seus ouvidos, como um pequenino tesouro que só eu sabia existir. O que faria com essa preciosidade, quando o tempo da formação terminasse e eu tivesse de regressar a Portugal e ele a Inglaterra, não era relevante. Não me incomodei nem por dois segundos em reflectir. Deixei os neurónios sossegados, e limitei-me a sentir. Até porque negociar comigo mesma era muito cansativo, não me sobrava energia intelectual para mais.
Assim, passávamos juntos todo o nosso tempo livre. Depois do trabalho, desaparecíamos da vista de todos, e rumávamos para o meu quarto ou para o dele.
Cada um de nós, formandos, recebia um subsídio de residência, que cada um era livre de gastar como entendia. Havia a arrendar na cidade quartos e apartamentos para todos os bolsos. Ian preferira ficar numa pensão mais modesta, para conseguir poupar o máximo de dinheiro possível. Não porque os seus recursos financeiros fossem escassos, mas porque lhe parecera palerma gastar demasiado dinheiro a arrendar um espaço provisório e no qual não contava passar muito tempo. Fizera tenções de, no seu tempo livre, viajar pelo país e pelos seus fronteiriços vizinhos, e o dinheiro que lhe sobraria por arrendar um espaço mais modesto vinha a calhar para o seus planos viandantes. Os quais eu estraguei.
– The best laid plans of mice and men… é para eu aprender! – dizia-me ele, expirando fingido sacrifício enquanto me despia.
Tardes, noites, fins-de-semana. As memórias que reuni nessas semanas não tiveram a serventia hipocritamente estipulada na negociação comigo mesma. Nunca vieram a servir para mais nada a não ser para sentir a falta dele. E para me arrepender de ter vivido o que vivi com ele apenas da maneira que me permiti viver na altura, poderia ter sido muito mais...
É claro que há recordações mais intensas que outras. As conversas na cama, não é possível lembrar-me de todas, com amarga pena minha. Sei que havia sempre riso. Havia sempre súbita seriedade – a dele – a desvirtuar inevitavelmente em mais riso – o meu.
Prestava sempre atenção ao meu corpo. Na cama ou mesmo na rua, acariciava-me um cabelo desalinhado, uma ruga num nó de um dedo. Podia estar a falar de banalidades, mais sérias ou mais cómicas, que os seus gestos revelavam sempre onde o seu desígnio morava. Era eu o seu endereço.
Ele conseguia ser profundamente sério, capaz de me comover até ao cúmulo do romantismo, e absurdamente hilariante, tudo ao mesmo tempo, ou tão de seguida que ambas as disposições pareciam concomitantes. Isso agradava-me, porque afugentava das nossas conversas o risco mais temido por mim: falarmos de amor. Estúpida. Era tão estúpida. Não percebia que quanto menos de amor falávamos, mais o amor se fazia notar. Até no riso.
As primeiras conversas que tivemos aconteceram no quarto dele, na pensão onde estava hospedado. Apesar de o aquecimento avariar com frequência, havia algo de infinitamente mais acolhedor e romântico no antiquado quarto dele, do que no meu apartamento moderno. E era lá que ficávamos juntos mais vezes.
Lembro-me de uma tarde de domingo, no seu frio quarto, em que Ian olhava o meu corpo com uma concentração tão desmesurada que acabou por despertar a minha atenção.
– O que observas tu com tanto cuidado?
– Estou a estudar o teu corpo.
– A estudar? O meu corpo?
– Sim… A aprendê-lo…
– Ok... E então, porquê?
– Quero conhecer as suas linhas, os seus sinais, os seus defeitos…
– Hei! – interrompi, de sobrolho levantado em advertência.
– Não brinques, – disse, circunspecto – isto é sério.
– Não brinquei, mas continua… – disse-lhe, porém mantive a sobrancelha em estado de sobreaviso.
– Por exemplo, tens um sinal aqui, por detrás do joelho esquerdo.
– Ah sim? Nunca reparei! – girei a perna e, de facto, lá estava. – Olha, pois tenho…
Encorajado pelas suas descobertas, prosseguiu, com um orgulho digno dos primeiros exploradores do árctico no semblante.
– E esta ruga aqui… – passou a ponta dos dedos suavemente, mesmo abaixo do meu umbigo – esta linha aqui, recortada em forma de um “M” expandido... se a unirmos visualmente ao cone invertido que forma o teu púbis, parece que se forma um coração.
Um sorriso aflorou aos meus lábios perante esta descrição de um delicodoce erotismo. Começava a habituar-me a estas suas tiradas, inspiradas, talvez, num híbrido de Burns e Anaïs Nin...
Ele inclinou-se devagar e beijou ao de leve o meu baixo-ventre. A seguir, deitou a cabeça sobre a minha barriga e olhou para mim com um sorriso sereno. Sorri-lhe de volta, e o meu coração acelerou à medida que eu passava os meus dedos pelos cabelos dele.
Como um gato que se entrega aos afagos, fechou os olhos e alargou o sorriso no seu rosto.
– Que estranho... – disse, franzindo uma interrogação na sua testa. – Estou a sentir o teu coração aqui! Está a bater depressa! – Abriu os olhos subitamente e o seu rosto tornou-se novamente sério. – Espera… Talvez não seja o teu coração… Acho que são… os teus intestinos… Se calhar, não estou seguro aqui!
– Cretino! – mudando rapidamente de posição, sentei-me sobre os meus joelhos, e fingi a minha indignação debruçando-me sobre ele como para o esganar. Ele riu-se e deitou a língua de fora, fingindo sufocar sob as minhas mãos à volta do seu pescoço.
Rimo-nos da brincadeira disparatada, até o riso se cansar e sossegar em sorriso novamente. Soltei-lhe o pescoço, e, levemente, subi as mãos até à base do seu rosto. Aproximei-me da sua boca e dei-lhe um beijo, como se estivesse a beber delicadamente de uma taça. Ele soergueu-se, apoiando-se num cotovelo, enquanto me acariciava a coxa com a outra mão.
Em poucos segundos, já estávamos entrelaçados, o corpo dele sobre o meu, a língua dele na minha, as minhas mãos nele e as dele em mim. As pernas afastaram-se e adaptaram-se, as ancas encaixaram-se e iniciaram o seu ritual oscilante.
Os olhos abriam-se e fechavam-se, e, à medida que o prazer se intensificava, as respirações transformaram-se em arquejos.
O sangue circulava mais depressa e o calor que provocava começava a humedecer a nossa pele unida. Se eu não soubesse, iria jurar que aquele quarto era de um hotel nos trópicos e não de uma pensão barata em Bruxelas…
Lúcia ao contrário (excerto 5) [Reel]
Nota: este excerto faz parte do meu novo romance ainda em produção. Todos os excertos deste romance aqui publicados não estão por ordem nem foram revistos.