Não há luar como o de Janeiro… (excerto 7)
Abril 06, 2023
In O Meu Nome é Afrodite
Contrariamente ao que a sua natureza impetuosa poderia fazer pressupor, Afrodite não foi desde cedo – ou por outra, desde que o exército desconcertado das hormonas no seu corpo fez soar o seu incomplacente toque de ataque – ousada e destemida nas suas conquistas amorosas. Aliás, as mais das vezes, conquistar era precisamente o oposto das suas acções: a sempre temerária Afrodite, a que desgarrava as amigas para as suas audaciosas aventuras, tornou-se, nos primórdios agridoces da sua adolescência, numa discreta e tímida espectadora. Dentro de si, sentia as implacáveis labaredas das emoções a conduzi-la numa incessante montanha-russa, mas por fora era incapaz de veicular os sentimentos que a consumiam. À vista do objecto dos seus desejos – fosse ele quem fosse naquela dada semana – encolhia-se numa dolorosa e angustiante falta de jeito, e toda ela era embaraço e vontade de fugir.
Feliz ou infelizmente para si, a sua desajeitada forma de estar não desencorajava de todo os avanços do sexo oposto, cuja atenção ela começou a atrair um pouco mais cedo que as suas colegas de turma. Mas, apesar de se sentir agradada das solicitudes recebidas, Afrodite não sabia exactamente o que fazer com elas, deixando que o seu semblante mitigasse por completo qualquer rasto de emoção afável que pudesse emergir. Assim, de rosto impassível e atitude indiferente, Afrodite repelia todos os candidatos a namorado, embora dentro da sua cavidade torácica batesse um desenfreado coração. Essa postura, tida por altiva, granjeou-lhe o régio epíteto de “Rainha Africana”, entre os colegas do sexo masculino.
- Que cambada de cretinos! – desabafava uma arreliada Afrodite com a amiga Madalena.
Cretinos ou não, o que era certo é que nenhum daqueles rapazes ficava indiferente à beleza singular de Afrodite, e o cognome com que a baptizaram indicava, acima de tudo, o estatuto de inalcançável.
Embora o arranque não fosse muito auspicioso, a verdade é que o restante percurso, aos poucos e poucos, foi deixando de ser tão atribulado, e Afrodite foi ganhando confiança em si mesma e à-vontade q. b. com o sexo oposto. Assim, pelos seus 16 anos, a sua desenvoltura cresceu e, de garota inibida e incapaz de se exprimir, passou a jovem mais pretendida do colégio. Contudo, Afrodite, bastamente aconselhada pela avó Gê - que a acompanhava nesta fase com um inconspícuo porém vigilante olhar de lince - apenas se envolvia com os rapazes por quem se apaixonava – era a regra de ouro que tinha. A questão é que Afrodite se apaixonava umas três ou quatro vezes por mês, de modo que o seu rol de namorados variava assiduamente.
Ultrapassadas as vicissitudes típicas da adolescência, a sua experiência da fisicalidade foi crescendo a par e passo com a sua experiência da emocionalidade, conquistando, gradualmente, os primeiros marcos de desenvolvimento sexual habituais, mas tudo sem transgredir a fronteira da virgindade. Para Afrodite, a perda da virgindade era algo que ela reservava para um patamar mais maduro da sua existência, talvez por doutrinação específica (e altamente profiláctica) da avó Gertrudes, ou talvez por, no mais íntimo e fantasioso reduto da idealização que fora construindo sobre a tão famigerada primeira vez, persistir a impreterível condição de nutrir pelo seu comparte um amor verdadeiramente significativo, no mínimo digno de um romance épico.
Contudo, com as circunstâncias trágicas e tristes que macularam o final da sua adolescência, essa construção idílica foi, por largo tempo, obliterada pelas novas exigências a que a sua célebre determinação tivera de dar resposta. Obliterada mas não esquecida.
Quase aos dezanove anos, após a partida da madrinha Etelvina, Afrodite lançou-se ao mundo numa fome voraz de descoberta e aventura. O seu espírito inquieto pôde, por fim, espreguiçar as suas longas asas e voar.
O primeiro voo que apanhou levou-a a Paris. Por lá se manteve durante cerca de uma semana, de onde depois partiu, de comboio. Durante os meses seguintes, realizou um périplo pelas principais cidades da Europa, demorando-se onde mais lhe apetecia, partindo de imediato de onde se sentisse menos tentada a explorar.
Foi conhecendo uma variedade de gente durante as suas estadas – gente de várias etnias e credos, com diferentes filosofias de vida e diferentes percursos calcorreados. Afrodite era como uma imensa esponja que absorvia todas as informações e impressões, todas as imagens e paisagens, todas as histórias e tradições, todos os sons e cores, cheiros, sabores, emoções e sensações. Anos mais tarde, ainda recordava esses primeiros contactos como uma época determinante na sua formação pessoal e, futuramente, profissional.
A sua fisionomia ainda tão juvenil poderia ter funcionado contra ela, mas, talvez pela sua boa estrela ou pela quantidade de anjos que velavam por si, as suas jornadas decorreram sem perigosidade, sendo que o seu maior infortúnio foi terem-lhe roubado o relógio num bar em Budapeste.
Os conhecimentos que travou não foram sempre inócuos, nem Afrodite era tão ingénua que não soubesse defender-se ou pudesse ser facilmente ludibriada a aventurar-se em experiências desconhecidas contra sua vontade. Afrodite experimentou o que lhe aprouve, aceitou o que lhe apeteceu, rejeitou o que entendeu. Quando as pessoas não lhe inspiravam confiança ou simplesmente lhe desagradavam, limitava-se a afastar-se, desaparecendo com um breve e internacional ‘ciao’. A sua juventude não era desafio para a sua argúcia nem para o seu sexto sentido, que a faziam salvaguardar sempre as suas opções de retirada.
Essa espécie de segunda natureza precavida e cautelosa foi uma surpreendente descoberta para si mesma, pois nunca pensou que reunia em si esse tipo de qualidades – e que emergiram à superfície da sua personalidade na ocasião mais conveniente. “Foi do convívio contigo, velhota…”, pensava, nostálgica, enquanto olhava a foto da madrinha Etelvina, que guardava como um tesouro num bolso secreto do seu casaco.
Entre alguns encontros mais felizes e outros menos auspiciosos, Afrodite conheceu um grupo de amigos, de variadas nacionalidades, mais ou menos da mesma idade, que viajavam um pouco como ela, sem rumo definido. Alguns elementos eram hippies saltimbancos, improvisando espectáculos de rua, com malabarismos e acrobacias, conforme as suas necessidades fossem exigindo um reforço dos fundos monetários; outros eram mais abastados, cujos pais patrocinavam não só os seus dispêndios, mas também os dos restantes menos afortunados membros do grupo – ainda que disso não tivessem conhecimento.
Um deles - de seu nome Samuel, embora todos no grupo lhe chamassem Joanie – captou a sua atenção desde o primeiro segundo que os seus olhares se encontraram, quando ele baixou a sua câmara fotográfica, depois de a fotografar. Samuel, além de fotógrafo designado do grupo, ambicionava trabalhar como freelancer e viajava com o objectivo de alargar o seu portefólio, vendendo ocasionalmente algumas das suas fotos para sustentar as suas despesas. Nascera na África do Sul, mas era filho de pais portugueses. Nunca estivera em Portugal, embora falasse a língua correctamente – e com um ligeiro sotaque do norte, de onde os seus pais eram naturais. Dono de uns inquietantes e luminosos olhos verdes, o seu sorriso caloroso e atitude serena pareciam contrastar com o seu estilo grunge: cabelos escuros, longos e ondulados, barba e bigode desleixadamente cuidados, t-shirt e jeans escuros aleatoriamente rasgados, e botas de estilo militar, desgastadas nas biqueiras, quer estivesse frio ou calor. A sua aversão a agulhas impediu-o de ter uns expectáveis brincos nas orelhas, mas compensava o facto ostentando vários anéis de prata e pulseiras de couro.
Depois de o conhecer, Afrodite integrou o grupo e não foi mais capaz de os deixar. Viu-se completamente invadida e dominada por uma onda sentimentos que desconhecia ser possível a qualquer ser humano experimentar. E contra a sua vontade, pareciam crescer exponencialmente de dia para dia. Sabia que o mais sensato seria regressar a casa, porque o seu instinto transmitia a todos os seus ossos o inconfundível arrepio da fatalidade. Afrodite sabia que estava prestes a perder-se mas não conseguia impedir-se de entrar no labirinto.
Tentou progressivamente aproximar-se de Samuel, mas ele parecia ignorá-la diligentemente. Ou pior do que isso, quando se dirigia a ela fazia-o num tom condescendente que a deixava exasperada. Os encantos da Rainha Africana pareciam não surtir qualquer efeito nele.
Mas, mesmo assim, Afrodite não desistiu de os acompanhar, e, no início do Verão, deu por si num qualquer festival trance na Índia, a dançar hipnoticamente ao som de uma música que não entendia, a beber o chá amargo que lhe entregavam, e a fumar o charro que lhe passavam. O seu intuitivo e recém-descoberto sistema de alerta parecia estar desactivado, e Afrodite deixou-se levar por aquele ambiente de abandono psicadélico colectivo.
Foi num momento de quase queda-livre no precipício que Samuel resolveu intervir e a agarrou no último segundo. Sob o efeito narcótico do que tinha consumido, Afrodite, intoxicada e desorientada, estava a ser conduzida pela mão por um homem mais velho que a observava atenta e predatoriamente há umas horas. Samuel interrompeu bruscamente aquele contacto e o asqueroso sujeito desapareceu entre a multidão mais depressa que uma ratazana num esgoto.
Samuel levou Afrodite para o acampamento do grupo, e cuidou dela até a sobriedade regressar ao seu aturdido espírito. Quando ela começou a dar acordo de si, o incomodativo e contínuo rumor percussivo da música ao longe foi atenuadamente aliviado por uma voz grave e amena.
- Então, miúda? Como te sentes? – Samuel acariciava suavemente as têmporas suadas de Afrodite.
- Vai-te foder, vai chamar miúda à tua tia! – Afrodite, de mãos na cabeça latejante, perdera toda a capacidade de filtrar a sua frustração e toda a paciência para ser educada.
Samuel explodiu numa gargalhada ruidosa.
- Como se fosses muito mais velho que eu, palerma… - a ressacada Afrodite era uma Afrodite com a franqueza na ponta da língua.
- Bem, folgo em ver que já te sentes melhor! – continuou, divertido, Samuel, em cujo rosto sorridente não transparecia o mais pequeno vestígio de indignação pela ofensa.
- Melhor? Melhor de quê? Tenho a cabeça a estalar!
- Sim, mas isso é uma melhoria ao estado em que te encontrei há duas horas atrás. E se não te tivesse encontrado, estarias com certeza bem pior agora.
- Pior?…Não sei do estás para aí a falar!
- Queres dizer que não te lembras de nada? Do velho porco que te estava a levar pela mão sabe-se lá para onde?
- Velho? Mas qual velho?
- Bem, minha, estavas mais pedrada do que eu pensava, se não te lembras de nada!
- Mas tu aparentemente lembras-te bem! Importas-te de dizer de uma vez o que raio aconteceu?
Samuel ainda ponderou em inventar outra versão dos factos recém-ocorridos, apenas para evitar que a memória de Afrodite pudesse ficar contaminada com uma recordação potencialmente traumatizante. Mas rapidamente decidiu que era melhor que ela tivesse consciência do risco que correra. Tal poderia evitar-lhe dissabores idênticos no futuro.
- Já ninguém te via há umas horas e eu resolvi ir à tua procura. Encontrei-te do lado direito do palco central, a dançar como se estivesses hipnotizada. Vai daí, quando me dei conta, um homem aproximou-se de ti e começou a levar-te pela mão.
- Um homem? Mas qual homem? Quem era?
- Não sei, um velho nojento qualquer que resolveu aproveitar-se de uma miúda com idade para ser neta dele!
- E tu…
- E eu corri com o gajo! A sorte dele é que tu precisavas de voltar para o acampamento e eu não te podia deixar, senão pregava-lhe era um biqueiro naquele focinho!
Afrodite olhou para Samuel e corou de vergonha e arrependimento pela sua brusquidão momentos antes.
- Desculpa, Samuel. Fui estúpida contigo. E tu afinal, salvaste-me de ser… enfim, nem quero pensar. Perdoas-me?
- Não há nada a desculpar, miú… Afrodite. – corrigiu Samuel. – Tu és das nossas. E nós cuidamos sempre dos nossos.
Samuel indicara a lógica de grupo no seu acto de salvamento, mas a carícia que fez a seguir na face de Afrodite parecia revelar um intuito estritamente pessoal. Olharam-se mutuamente, esquecidos, por momentos, de onde estavam. Não havia ruído, nem vento, nem ninguém à sua volta. Apenas os dois ali estavam, unidos numa outra dimensão que começara a ser criada naquele preciso instante.
Afrodite sentiu uma vertigem a dominá-la e decidiu quebrar aquele envolvente silêncio antes que caísse na profundeza abissal daquele olhar.
- Porque é que te chamam Joanie?
- Porque sou de Joanesburgo.
- Ah, afinal é por isso…
- Porque é que pensavas que era?
- Por teres o cabelo comprido e usares tantos anéis e pulseiras…
- Que é que isso tem a ver?
- Então, Joanie não é nome de rapariga?
Samuel baixou os olhos a sorrir, um tanto ou quanto desconcertado.
- Então, e tu, porque é te mandas ao tecto por te chamar “miúda”?
- Mando ao tecto?
- Sim, porque é ficas nas horas, porque é que te chateias.
- Ah… isso. Bem, porque não sou nenhuma miúda. Já passei por muita merda na vida para agora me virem chamar de miúda. Achas que uma miúda viaja sozinha pelo mundo fora, com o seu próprio dinheiro, sem dar satisfações a ninguém?
- Não tens pais?
- Não, já morreram. Aliás, já não tenho família. Já morreram todos.
- Eh pá, isso deve ser tramado. Mas não tens ninguém?
- Tenho amigas, lá em Lisboa. A Madalena e a mãe dela. São como família.
- E tens-me a mim. Se me quiseres… - Samuel pegou-lhe docemente na mão esquerda e levou-a aos seus lábios, depositando na sua palma um leve e morno beijo.
Afrodite estremeceu, não sabia se de contentamento por finalmente estar a receber de Samuel a atenção que há tanto tempo desejava, ou se de temor pelo que viria a seguir. Mas com receio ou sem ele, não se atreveu a retirar a sua mão das de Samuel, que não pareciam, por seu turno, resolvidas a libertá-la.
Nenhum dos dois ousou quebrar aquele encantamento silencioso, deixando que as suas mãos unidas transmitissem por eles todas as palavras que calavam. Ambos sabiam que as suas mãos não faziam mais do que preconizar a união a que os seus lábios aspiravam. Porém, os seus olhares permaneciam desviados, focados apenas nos gestos ternos e lentos dos seus dedos a entrelaçarem-se.
Samuel foi mais corajoso: a dado momento, olhou o rosto baixado de Afrodite e, libertando a mão direita, varreu-lhe a face esquerda com uma suave carícia que se deteve sob o seu queixo. A seguir, ergueu-lhe o rosto para que ela o olhasse também, para que o céu negro dos olhos dela se encontrasse com o verde mar dos dele. Relutante, Afrodite levantou o olhar e encarou, ainda vacilante, a cara de Samuel. Lentamente, ele aproximou-se e beijou-a. Foi o salgado sabor da sua boca que acelerou o coração dela e a fez render-se: sabia que o amava e sabia que o iria amar durante muito tempo. Senão mesmo para sempre.
Quando os lábios se separaram, sorriram como todos os novos amantes sorriem após o primeiro beijo: é o regozijo, ainda espantado, por nos sentirmos correspondidos, a par da ansiedade que desperta para descobrir em que momento exacto acontecerá o próximo beijo. Nunca é preciso esperar muito, pois quebrada a hesitação envergonhada do primeiro, os seguintes parecem não carecer de permissão para acontecerem, e em poucos minutos os lábios reúnem-se como se, desde há muito, soubessem de cor o caminho que os conduz ao seu encontro.
O tempo e o espaço deixaram de contar nas horas seguintes. Deixaram-se ficar assim, de mãos dadas, entre beijos longos e palavras murmuradas, até a madrugada os derrotar e adormecerem abraçados.