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Ana Pinto

Blog Literário

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Os trilhos que percorremos (Parte II e última)

Junho 01, 2023

in Ode Aos Meus Mortos

Photo by Soroush Karimi from Pexels

[...] No dia seguinte, foram todos ao funeral. Eu fiquei em casa – “não é sítio para uma criança”, decretara a mãe, tentando organizar um pouco o desalento opaco que cobria a família toda. Assim, passei mais uma manhã inteira à espera, sem conseguir fazer nada de útil, nem sequer distrair-me a ler ou a ver televisão. Bom, não fui totalmente inútil: sem ninguém me pedir, lavei a loiça do pequeno-almoço, e fiz as camas – não só a minha, como já era costume, mas também a dela, que, contra os seus aprumados hábitos, deixara desfeita. Achei que ela não iria ter paciência para isso quando chegasse. A meio da tarefa, apercebi-me que não sabia fazê-la tão escrupulosamente como ela a costumava fazer, e que corria sérios riscos de a arreliar ainda mais. Eu nunca me incomodei muito se o lençol ficava mais comprido de um lado que de outro, ou se alguns enrugados altos se formavam aqui e ali devido a um cobertor mal esticado. “É só para dormir, não é para expor no museu!” pensava eu desdenhosamente quando a via fazer a sua cama com tanto rigor, ajustando milimetricamente as pontas do lençol e alisando meticulosamente cada cobertor, tudo devidamente entalado sob o colchão, e, no final, o edredão com padrão de flores cor−de−rosa estendido diafanamente sobre a cama, em cujo fundo repousaria uma manta de igual tom, delicadamente dobrada. “Parece uma cama de hotel!” – dizia-lhe eu, mais a escarnecer do que propriamente a elogiar, embora ela assumisse, com um sorriso de orgulho, que era do último caso que se tratava.

 - Bem lembrado! – corri até ao andar de baixo e procurei o tesouro que a mãe achava que ficava sempre bem escondido debaixo da lata da farinha. – Achei! – voltei a galope no meu corcel invisível e coloquei o precioso item na almofada dela. Podia não parecer de hotel, mas pelo menos tinha um chocolate na almofada como se fosse! E um Imperador, não um chocolate foleiro qualquer! De certeza que a mãe, por aquela vez, não se iria importar do assalto ao seu esconderijo secreto.

Quando ouvi a chave a rodar na fechadura da porta, corri para a sala de entrada para receber a soturna comitiva. Ao vê-la dirigir-se para o quarto, predispus-me a segui-la – não podia perder a sua reacção ao ver a sua cama feita e com uma chique surpresa na almofada. Mas a mãe frustrou-me os planos e puxou-me por um braço.

 - Vai brincar para outro lado, deixa a mana ir descansar em sossego.

Não me atrevi a contrariá-la – nunca o tinha feito na minha curta vida, não era num dia como aquele que iria começar - mas não disfarcei a minha decepção. Resolvi que o melhor era ir ao parque, andar de baloiço a ouvir música.

Ia já a meio caminho do corredor, quando me lembrei que tinha deixado o walkman no quarto.

 - Esqueci-me do walkman, posso ir ao quarto buscá-lo?

A mãe anuiu, não sem um abanar de cabeça de sobreaviso – Vai lá mas não te demores, a mana precisa de repouso.

Subi as escadas a correr, abrandando nos degraus finais para moderar o barulho dos meus pés.

Abri a porta com cuidado para não a acordar, já imaginando como raios iria eu conseguir achar o walkman na penumbra em que o quarto estaria sem dúvida mergulhado. Mas para minha surpresa, as cortinas continuavam por correr e ela, sentada na beira da cama, olhava fixamente para o bombom que segurava na mão direita.

Fechei a porta e sentei-me na minha cama, à sua frente. O meu instinto dizia-me que não era de repouso que ela estava a precisar naquele momento. E talvez também não fosse de sossego.

 - Era o chocolate preferido dele... – balbuciou, ao fim de uns segundos, olhando para mim com um sorriso desmaiado, perdido, até, numa qualquer recordação feliz.

 - Ai era? Não sabia... Pus aí porque assim parecia uma cama de hotel, como tu gostas...

Ela olhou vagarosamente à sua volta, parecendo que só naquele instante se dera conta que a sua cama estava feita, ou mesmo que era em cima dela que estava sentada.

O silêncio voltou e eu deixei-o estar, pensando que lhe seria mais cómodo. Mas ela achou o contrário e começou a falar, muito, rapidamente, a dizer tantas coisas ao mesmo tempo que eu tive dificuldade em entender tudo naquele discurso aparentemente desconexo.

 - Ele tinha mania de ir sempre por ali! Estúpido, teimoso de merda! Tantas vezes o avisei, tantas vezes lhe pedi “Vai dar a volta pelo outro lado da estação, por favor, João! Não vás pela linha, um dia corre-te mal a vida!” – quem tinha razão? Eu, claro!

As lágrimas começaram a rolar-lhe cara abaixo e ela tirou um lenço amarrotado do bolso e começou a limpá-las sem grande firmeza – ciente, talvez, da inutilidade da tarefa.

 - Para poupar quê? Cinco minutos? Valeu-te bem a pena, palerma! Cretino, imbecil!

Fez nova pausa para assoar o nariz, mas o lenço estava tão molhado que já não tinha área útil de enxugamento. Abri a minha gaveta da mesinha de cabeceira, tirei de lá um lenço seco e estendi-lho. Ela assou-se profusa e ruidosamente, enquanto, de rosto inchado e rubro, me agradecia o gesto com um breve piscar de olhos.

Pensei que o catártico desabafo tinha terminado, mas ela continuou. Insultou o falecido namorado mais uma meia dúzia de vezes e disse mais outros tantos palavrões – alguns dos quais eu nunca tinha ouvido e nem sabia muito bem o que significavam ao certo. Ao ponto de eu não saber se ela estava mais zangada com ele por ele não lhe ter feito caso ou por lhe ter morrido.

De súbito calou-se, absorta. Distraidamente, desembrulhou o chocolate e meteu-o de uma vez à boca. Eu ia sugerir-lhe que não o comesse de uma vez por causa da amêndoa escondida no meio, mas não fui a tempo. Ela trincou-o com tanta força que decerto não haveria amêndoa no mundo capaz de resistir àquela dentada furiosa. Em duas ou três mastigadelas coléricas, o chocolate sucumbiu e foi rapidamente deglutido.

 - Que merda de chocolate...

Eu ri-me. Pus logo a mão na boca e olhei-a com ar culpado. Ela levantou os olhos na minha direcção. E riu-se também. Não fazia mal rir, mesmo se era de tristeza que os próximos tempos seriam feitos.

Rimos as duas durante um bocadinho. Depois, ela tirou os sapatos e deitou-se, virada para a janela. Eu levantei-me e fui correr as cortinas. Ao sair do quarto, ouvi-a dizer:

 - Fazes-me um favor?

 - Diz.

 - Trazes-me outro chocolate?

 - Trago já.

Desci à cozinha e, ignorando o ar espantado dos meus pais sentados à mesa a beber café, subi a uma cadeira, abri o armário e tirei a caixa dos Imperadores escondida debaixo da lata da farinha.

 - Foi ela que pediu. – condescendi em explicar-lhes.

Voltei ao quarto e naveguei o agora sombrio percurso até à mesinha de cabeceira comum, onde pousei a caixa dos chocolates. Olhei para ela, tentando decifrar a sua respiração – dormia; ela não sabia fingir como eu.

Tapei-a cuidadosamente com a manta e, agarrando na minha mochila poisada aos pés da minha cama, saí.

Quando cheguei ao parque, sentei-me num baloiço, e deixei-me estar por alguns minutos num lento vaivém. Ouvi o som do comboio, ao fundo, e levantei os olhos na direcção da estação. Pus um pé no chão e interrompi o balanço. O homicida podia continuar à solta, mas eu não tinha de o ouvir.

Apalpei o bolso exterior da mochila.

 - Merda! Esqueci-me do walkman!

Meti a mão no bolso das calças e tirei um Imperador.

 - Paciência...

Desembrulhei-o e deixei-o derreter devagar na minha língua. Resignada, fechei os olhos e continuei a baloiçar.

 

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