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Ana Pinto

Blog Literário

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Partilhar o silêncio

- Quotidianos Paralelos -

Janeiro 12, 2024

Foto de Kaushal Moradiya no Pexels

Detesto pessoas que não conseguem estar paradas, que não conseguem estar em silêncio. Que têm uma necessidade constante de encher tudo à sua volta, de sons, de movimento, só para se esquecerem do vazio incomensurável que levam dentro – talvez para que não as consuma por completo.

Eu gosto da tranquilidade, do sossego, do silêncio. Gosto de espaços vazios de gente, gosto de sentir o eco da solidão à minha volta.

Julguei durante muito tempo que o que tinha dentro era também um incomensurável vazio, que tinha forçosamente de preencher. Por isso, tentei, como tantos, preenchê-lo por fora – porque se por fora houver movimento e barulho, o silêncio do vazio interior não terá hipóteses de se impor e nos ensurdecer.

Mas inevitavelmente descobri que, de facto, não sou assim. Tenho tanto cá dentro, tantos pensamentos, tantas emoções, tantas ideias, tanta energia a florescer a cada segundo, que se o espaço à minha volta for tão igualmente cheio, sinto que me afundo, que não respiro, que não há senão ruído insuportável a poluir tudo.

Não preciso de ouvir o mundo cá fora, quando tenho todo um mundo a pulsar cá dentro.

Descobrir que não se é vazio torna-nos estranhamente seguros e fortes. De repente, entendemos que não nos podemos perder de nós próprios, e por isso não somos frágeis. E a solidão deixa de ser um temor.

O que temos cá dentro podemos partilhar, mas só com alguns, só com os que entendem também o silêncio. Só com os que não o temem. Só com os que compreendem que a luz só é bela porque há sombras onde descansar e de onde a contemplar.

Mas encontrar alguém assim nunca foi fácil, e acabei mesmo por perder as esperanças de o conseguir. Houve algumas pessoas que pareciam capazes de entender-me, mas rapidamente concluíram que tanto silêncio e sossego lhes dava mais nervos que amenidade.

Deixei de procurar, resignei-me de bom-grado à minha condição solitária e não pensei mais nisso. Afinal a solidão nunca me custou. Se tivesse de ser completa e eterna, não seria mais nem menos desejada.

Os familiares mais próximos é que pareciam resolvidos a não me deixarem só.

Não é normal, Susana, ninguém é feliz sozinho! - insistiam. - Agora é tudo muito lindo, mas é enquanto tiveres saúde! E depois, mais tarde?

Mais tarde o quê? – questionei-lhes.

Mais tarde, quando fores mais...quando fores menos...

Mais, menos o quê?

Quando fores menos capaz de tudo! Aí é que tu vais ver como a solidão te vai pesar!

A conversa, com mais ou menos variantes, terminava sempre comigo a encolher os ombros, indiferente aos cenários da velhice desgraçada que todos na família me pintavam.

Contudo, suportei solenemente todas as suas vãs tentativas de me fazerem um arranjinho, por saber que o faziam por bem. De tempos a tempos, marcavam-me encontro com alguém que, juravam, era perfeito para mim!

Este é o Rodrigo, é contabilista e gosta de estar em casa ao fim-de-semana! Não aprecia saídas nem agitações sociais! Queres melhor?

Queria. O Rodrigo gostava de fazer tudo ao som da ópera – ler, trabalhar, tomar banho, cozinhar, tudo, mas mesmo tudo... Se não a estava a ouvir, cantava-a. Quando recusou usar os phones como lhe sugeri, mandei-o ir trautear Wagner para a casa dele. Esta Valquíria não aprecia cavalgadas tão turbulentas...

Este é o Filipe, bibliotecário. Calado como um ratinho de biblioteca... – e tão atreito a alergias que não passava mais de dois dias sem uma crise de rinite, com espirros estrondosos e tosse de cão amplificada.

Este é o Horácio, jardineiro. – corta-relva a motor, preciso de dizer mais?

Este é o Pedro, médico legista. – era sossegado, de facto, mas demasiado sinistro.

Eventualmente acabaram por desistir, e eu pude prosseguir a minha vida de eremita, confortavelmente instalada na minha silenciosa solidão.

Estavam todos errados – nunca me pesou. Os anos sucederam-se e a minha tranquila felicidade solitária nunca foi sequer beliscada por um ou outro sentimento de pesada angústia.

Vivi sempre leve. Serena. Em paz.

Até que um dia o encontrei. Sentado – sozinho! – num banco do parque da cidade, numa plácida tarde de quarta-feira, em que o intolerável rebuliço do fim-de-semana, com os seus passeios em família e piqueniques de excursões turísticas, ainda vinha longe.

Lia o mesmo livro que eu trazia debaixo do braço. Sentei-me no banco à sua frente e esperei que ele me visse. Quando, por fim, levantou a cabeça na minha direcção, sorriu e perguntou:

 – Estás a gostar?

Quando o vi a olhar-me directamente, algo em mim estremeceu. Foi o reconhecimento instantâneo. Reconheci-o imediatamente como o meu tipo de “alguém”. E o que havia para não gostar nisso? 

 – Do livro, quero dizer – esclareceu.

 – Gostei mais do primeiro. – respondi.

 – Eu também.

Arrumou um pouco as suas coisas poisadas à toa ao seu lado, e convidou-me, com um gesto amável, a sentar-me ao seu lado. Ele reconhecera-me também. Ficámos os dois sentados, lado a lado, a ler em sossego.

Desde esse momento até hoje, somos isso um para o outro: o “alguém” certo com quem partilhar tudo, principalmente o silêncio.

 

Partilhar o silêncio [Reel]

 

 

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