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Ana Pinto

Blog Literário

Ana Pinto

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Rio

Swipe [I]

Parte 1/1 de uma história que nunca aconteceu

Junho 14, 2024

Foto de cottonbro studio no Pexels

Os tempos estão muito mudados. Correm numa pressa circular, que não parece ter fim. Nem princípios. Apenas dificuldades e complicações.

Cansados e sem tempo, queremos entregar‑nos à indulgência de simplificar o que significa viver. Não queremos conceitos difíceis, nem teorias trabalhosas.

Queremos só ser felizes. Temos pressa de o sermos.

Conseguir alcançar alguma felicidade parece ser a única coisa realmente importante. Todos fazemos de um tudo para nos sentirmos mais perto desse esquivo e escorregadio objectivo.

Mas ser feliz sozinho é, desde há muito, uma contradição de termos, seja por ditame da psicologia ou da poesia. Encontrar sentido numa existência solitária pode ser difícil, senão mesmo triste. Ou apenas potencialmente mais aborrecido.

Por isso, o que procuramos quando procuramos ser felizes seja, talvez, não sermos infelizes sozinhos.

Nos inconstantes dias de hoje, há quem faça muita coisa diferente para se sentir feliz, com mais ou menos esforço, com mais ou menos dedicação. Por vezes, até sem intencionalidade consciente. Temos um vazio que precisamos preencher, e tentamos fazê‑lo, automaticamente, instintivamente. Se lhe chamamos solidão ou tédio, já depende de cada um.

Há quem ache que precisa de sair para descobrir o que lhe falta, e vá para fora – passear na praia, caminhar na cidade, aprender um ofício novo, aderir a um clube de leitura.

Há quem prefira não ir muito longe e opte por tentar encontrar o que pretende cá dentro – navegar por entre marés de informação num pequeno ecrã, remos dos dedos apressados, bússola desmagnetizada, à deriva, à procura de atracar em bom porto.

É neste último tipo que Ela e Ele se encaixam. Duas pessoas solitárias, mas ainda renitentes em admitir de o serem. Tinham um vazio ao qual não sabiam dar nome algum – tédio talvez não fosse, mas a solidão costuma impelir mais as vontades. Talvez fosse só um desalento distraído, ainda à espera de ser vontade atenta.

Fosse o que fosse. Passeavam‑se os dois assim, um de cada lado de um mesmo URL, sem conhecimento das suas concomitantes existências – que é como quem diz, não se seguiam um ao outro.

Até que o destino – ou o algoritmo por ele – os juntou, na esquina de um poema a que ambos puseram like e comentaram exactamente com os mesmos emojis.

Ele viu‑a, e achou graça. Ela viu‑o, e riu‑se também. Puseram um coração no comentário um do outro, e nunca mais deixaram de pensar nisso. O vazio que não sabiam que tinham, começou a preencher‑se. É o problema dos vazios que não sabíamos que tínhamos – quando damos por eles, não conseguimos pensar noutra coisa.

Pesquisaram‑se mutuamente. A curiosidade, da qual se diz ser fatal para os pequenos felinos, costuma espicaçar quem, como aqueles, desliza o olhar no escuro, atraído por um ponto brilhante.

Não havia, contudo, muito a descobrir: Ele partilhava filmes e poesia, Ela partilhava canções e poemas. Uma foto ou duas, um ou dois momentos cativos sobre uma intimidade que sugeria mais do que informava. E que aliciou mais do que matou.

Ele arriscou primeiro, como, de resto, é vulgar acontecer – tanto na vida virtual como na factual, é comum serem “eles” a dar o primeiro passo. Haverá, quem sabe, um regulamento, informal e não verbalizado, que assim o determina, e que vem de um código entranhado na pele, mas mais tatuado pelo hábito do que propriamente imprimido pela genética.

Ela aceitou e deixou‑se seguir. Aguardou os dez minutos da praxe, e passou a segui‑lo também. É costume serem “elas” a cederem à cerimónia. Há antigos rituais convencionados que seguem um guião primitivo, ao qual as gerações binárias têm séria dificuldade em escapar.

Nenhum dos dois sabia muito bem o que fazer ao certo, a seguir. Nem Ele nem Ela haviam estado alguma vez numa situação assim. Vinham ambos de uma geração ancestralmente analógica, obrigada a mover‑se num tempo funcionalmente digital. E essa lógica vigente ainda lhes trazia às mentes e mãos alguma confusão.

Começarem a aventurar‑se numa intimidade que lhes era, até ali, inédita, custou‑lhes um pouco ao início: como falarem de si próprios a alguém que nunca tinham visto, como abrirem aquelas portas, tão há muito fechadas, a alguém que não conheciam?

Mas talvez por isso, por nunca se terem visto, as portas que levavam trancadas foram‑se abrindo, para sua surpresa, umas atrás das outras, com uma facilidade tão oleada que não havia trinco perro que resistisse!

A timidez inicial logo cedeu a uma necessidade que não existia até então: falarem um com o outro tornou-se tão imprescindível que nenhum dos dois se lembrava o que faziam antes com o tempo que agora ocupavam juntos.

Sem saberem muito bem como, as conversas fluíam sem esforço, renovadas a cada início de sessão, deixando as noites tão coladas aos dias que mais pareciam ininterruptas.

Riam. Não há conexão como a que é estabelecida pelo riso. É um clique cerebral que activa ligações emocionais. E as suas partilhas começaram por aí: um meme jocoso, um gif trocista, um vídeo hilariante, num crescendo irresistível. O sentido de humor é fatal: ou se criam inimigos, ou se criam cumplicidades. Às vezes irreversíveis, tanto estas como aqueles.

Se o riso unir os humores, é certo que a seguir virão outras artes. Os filmes, as músicas, as bandas preferidas, a pintura mais marcante, o livro inesquecível.

As perguntas sucediam-se e as respostas não hesitavam. Percorriam ambos os caminhos de um labirinto que os conduzia à inevitável encruzilhada. Não pensaram nem pressentiram – deixaram‑se escorregar nas palavras incessantes, sem qualquer vontade de pausas. [...]

 

Nota: levei este conto à edição deste ano do concurso Novos Talentos da Fnac. Infelizmente, não teve sucesso junto do júri. Espero que possa ter melhor sorte com os leitores deste blog! 
Apesar do que o subtítulo promete, vai dividido em duas partes - a segunda será publicada na próxima sexta-feira, como já é hábito nas minhas «Sextas de Ficção».

 

Swipe [Reel]

 

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