Óscar
- Quotidianos Paralelos -
Dezembro 29, 2023
Esta era a melhor parte do seu dia – quando, aproveitando a penumbra adormecida da casa, podia finalmente ver tudo o que ela publicara.
Com calma. Como quem saboreia um whisky velho. Apreciando cada detalhe de cada imagem, cada vírgula de cada frase, cada nota de cada música.
Ninguém como Óscar sabia o grau de dedicação que ela empregava a escolher, com precisão cirúrgica, cada pormenor. Ninguém como Óscar era capaz de o apreciar tão completamente.
Assim que tocava no ícone no seu telefone e acedia à página dela, ele viajava, de imediato, para outra dimensão, para outra realidade, onde não se respirava nada além de liberdade e tudo convidava ao seu pleno usufruto. Ali era capaz de dançar, de cantar, de rir, ou só de calar em sossego sem sentir que algo ficava por dizer.
Mas era apenas a sua mente que partia por instantes. O corpo continuava sentado no sofá, refém de uma factualidade intransigente e inclemente, que lhe ia decompondo os dias até, eventualmente, nada dele restar senão pó. Às vezes imaginava um montículo de poeira cinzenta, com a sua forma, sentado naquele lugar, e sorria. Mas aquele sorriso insípido que todos fazemos quando não queremos que o amargo da vida nos encha a boca, mas que tão-pouco chega para a adoçar.
Viajar no tempo é uma realidade – ninguém melhor que Óscar sabe isso. Ainda que o corpo não saia do lugar, a alma parte, leve e livre. O perigo é que, às vezes, não volta. Por isso é que há tantos invólucros de gente vazia por aí – a alma partiu e nunca mais voltou, restando apenas a cápsula oca até ao final dos seus cárneos dias.
Foi o que sucedeu a Óscar. Um dia sentou-se no sofá de telefone na mão, e, como de costume, deixou a alma partir. Mas dessa vez, para sempre. Deixou de fazer questão em forçá-la a regressar.
A mulher chamou por ele, mas ele não respondeu porque já não estava cá. Ainda assim, passaram-se anos antes de alguém dar por qualquer diferença. Talvez porque a vida em Óscar sempre tivesse batido num coração longínquo daquele que levava encaixado no seu peito.
No dia do seu funeral, alguém disse que a alma dele estava finalmente livre e de regresso a casa. Alguém que, por certo, ignorava que a alma de Óscar já era livre há muito, e morava feliz onde o sonho e a verdade são a mesma coisa – na imaginação dela.