Lúcia ao contrário (excerto 6)
Fevereiro 16, 2024
Odeio tudo o que sou por causa dele – e tudo o que fui com ele.
A coberto do seu pretenso amor por mim – aquele que mais nenhum homem à face da Terra sentira ou viria alguma vez a sentir – tudo lhe serviu para atingir os seus objectivos, desde os mais detalhadamente planeados aos menos premeditados.
Amava-me tanto, mas eu não era suficiente. Porque, afinal de contas, eu era apenas eu. E teimava em sê-lo. E teimei, durante algum tempo. Até que me fui cansando e desisti de resistir, e comecei a tentar ser aquela amálgama de farrapos de gente que ele achava que eu devia vestir.
Quase sem me dar conta, fui-me perdendo de mim. Aos poucos. Um milímetro hoje, uns metros amanhã. E, acordei, um dia, a ser o nada que ele maquilhou a seu gosto, com a sua pila dentro de mim, e os seus insultos sórdidos à laia de role-playing pornográfico.
Depois de tanto tempo a agir em conformidade, comecei a arriscar. Não fazia o jantar – e quando o fazia era de pacote. Lavava a roupa quando calhava, mas nunca a passava a ferro. As minhas rebeldias não lhe faziam mossa – não passavam de pequenas travessuras feministas que ele suportava, na sua benevolência de macho provedor.
Até eu começar a recusar o sexo. E aí caiu o Carmo e a Trindade. Mexam em tudo, menos na foda sagrada entre marido e mulher!
Analisei os dados com rigor científico, e concluí que tudo, invariavelmente tudo, se resumia ao sexo. E nem sequer ao sexo proveitoso e satisfatório entre os dois. Apenas o dele. Enquanto o seu amplexo estivesse satisfeito, a vida decorria como era suposto.
“Não fizeste o jantar? Não faz mal, amor, manda-se vir!”, “Não me lavaste as camisas? Deixa-te estar, eu levo-as à lavandaria!”, “Hoje lavo eu a loiça, tu descansa!” – nada o apoquentava.
Eu podia dormir o dia todo, não sair à rua, passar o tempo de pijama, encolhida a um canto da casa a chorar em silêncio – que ele nem pestanejava. “Isso é por causa da chica, não é?”
Porém, quando calma e até sorridentemente, sem sequer qualquer falta de paciência nem energia para os importantes lavores domésticos, lhe negava o acesso ao templo sagrado do prazer conjugal, a vida tornava-se subitamente num inferno!
Batia com as portas, atirava com a loiça, rosnava-me insultos. “Estás-te a guardar para quem? É para o cabrão do vizinho de cima? Achas que alguém olha para ti se não for eu? Já te viste ao espelho?”
Quando começou a ganhar o hábito de beber – talvez para suprir os apetites que não eram saciados – eu ganhei o hábito de dormir no quarto das visitas, com a porta fechada à chave. Ele nunca fora fisicamente agressivo – toda a sua violência emergia nas palavras que me cuspia com ódio ou desdém, e nos sacões rudes com que me penetrava, na crença distorcida de que assim é que eu gostava – mas há sempre uma primeira vez, e eu preferia não tentar o diabo.
Mas o diabo não teve tento. Um dia rebentou com a porta trancada e eu pensei que ia rebentar comigo também. Olhava-me com a fúria do macho ofendido, e eu sabia que, para ele, isso não tinha perdão. Ousei e abusei, durante semanas, contando no relógio o tempo que faltaria para aquele momento: o alarme soou, fim do tempo.
Apesar da raiva engarrafada nos olhos, chegou-se calmamente à minha beira, pegou-me por um braço e obrigou-me a ajoelhar à sua frente.
Eu tremia. Sabia que iria chegar a algo assim, mas saber não me impedia de o temer.
– Pede perdão. – disse, a voz áspera e o hálito a rum a encherem o quarto.
– Mauro, desculpa...
– Não, não é assim.
Olhei-o, com o peito cheio de ar indignado. Corei, como se quisesse ou pudesse ser virgem de novo.
– Não te faças de santa. Tu sabes que gostas.
Abriu o fecho das calças e agarrou-me no cabelo. Obedeci.
Quando tudo terminou, deitou-se na cama comigo, abraçando-me e murmurando ao meu ouvido, até o álcool o vencer e ele adormecer: “amo-te, és o amor da minha vida, nunca te esqueças disso.”
Não voltei a recusar-lhe nada, durante muito tempo. Preferia a paz armada que conhecia à repugnância ultrajante de um inferno imprevisível. Quem saberia o que ele seria capaz de fazer a seguir?
Ainda hoje me questiono como me aconteceu descer tão baixo. E ainda acordo, todos os dias, a respirar de alívio por ter voltado à superfície.
O Mauro nunca entendeu o porquê do divórcio, para ele aquilo era amor. E o mais doloroso é que, no início, eu achei o mesmo. E talvez fosse, talvez o único amor possível entre nós os dois fosse aquele, disforme, doentio, mau.
Não sei. Sei que dentro das palavras de amor cabem muitas outras que nada têm a ver com ele. Por amor são feitas críticas, de amor emergem conselhos, com amor se empurram vontades pela garganta abaixo, sem se ver as lágrimas que escorrem pelo coração adentro. E por amor, consentimos que tudo isso aconteça.
Por isso já não creio no amor. O amor cala quando deve falar, grita quando deve apaziguar, sufoca quando deve libertar.
‘Mas isso não é amor’, dirão os entendidos. Não? Têm a certeza? Pois, se calhar não é. Mas antes de desatarem a recitar-me São Paulo aos Coríntios, atentem na hipótese: se calhar todos os amores começam por ser a dedicação que, ao passar do tempo, se transforma em dívida. E esta será sempre cobrada.
Quando me cansei de pagar, fiz as malas e fui-me embora. Não disse nada, saí de manhã e nunca mais voltei. Não tinha para onde ir. Apanhei um comboio e fui para a cidade mais próxima, onde me acomodei num modesto hotel. Ele telefonava-me incessantemente, e eu rejeitei todas as suas chamadas, convictamente.
No dia em que o divórcio foi finalmente acordado, voltei para a minha cidade. A familiar faixa azul no horizonte tranquilizou-me. Estava totalmente por minha conta, mas estava em casa.
Não sabia o que iria fazer a seguir, mas sabia que, fosse o que fosse, com quem quer que fosse, tudo seria diferente: diria sempre a verdade, não faria mais favores a ninguém e, sobretudo, não mais acreditaria em vãs palavras de amor. A minha dívida estava saldada, e eu não tinha qualquer vontade de começar uma nova.
E como não sou de fiar, como todas as minhas escolhas tão bem me demonstraram, decidi que, dali para a frente, iria contrariar o meu primeiro instinto fazendo exactamente o oposto. Tudo ao contrário, talvez assim a vida funcionasse.
Lúcia ao contrário (excerto 6) [Reel]
Nota: este excerto faz parte do meu novo romance ainda em produção. Todos os excertos deste romance aqui publicados não estão por ordem nem foram revistos.