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Ana Pinto

Blog Literário

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Lúcia ao contrário (excerto 7)

Parêntesis

Março 01, 2024

Foto de Hıdır Dedebey no Pexels

Não, não está certo menosprezar a adolescência. Amor é amor, seja em que idade for, rima e é verdade. E aquele primeiro amor que vivemos, eu e o meu super-homem, não foi pequeno nem desprovido de profundidade.

Mas a adolescência era, mesmo sem depreciar, o pano de fundo da nossa relação. Com tudo o que esta traz de intenso, ridículo e volátil, tudo em igual peso e medida.

Eu e o Jon namorámos durante três meses, e ao cabo desse tempo, eu terminei tudo.

Parti-lhe o coração. E nem sequer tive um bom motivo para isso. Apenas achei que era demasiado cedo para sentir tudo o que sentia. Apesar de ter passado tanto tempo a suspirar e a desesperar por sentir algo assim, de repente achei que tudo aquilo era demasiado para mim. Que querem? Eram as incongruências da idade.

A intensidade do que sentia fez-me entrar tanto na minha cabeça que estava sempre a avaliar tudo, a medir tudo, até à exaustão. Era como se precisasse de me certificar a cada instante que o que sentia estava mesmo a acontecer, e se eu era o recipiente adequado para tanto conteúdo.

Aos poucos, fui criando uma fragmentação dentro de mim própria: personalidade e mente analítica de um lado, emotividade e coração de outro. O laboratório estava montado, e eu era o cientista e a cobaia, ao mesmo tempo.

Aquele escrutínio constante acabou por tomar conta de tudo, ao ponto de eu começar a sentir que havia duas Lúcias neste mundo: a de dentro e a de fora.

Lembro-me de me sentir desligada de mim própria, como se estivesse numa experiência fora-do-corpo a ver-me de longe. Não me reconhecia, os gestos, as palavras, os risos, não os sentia como meus. Aquela rapariga não era eu. E por muito que tenha tentado sacudir essas sensações de distanciamento e de estranheza face a mim própria, não consegui fazer com desaparecessem e eu pudesse simplesmente ser eu, como sempre fora, dentro da minha pele e pensamentos.

Era uma estranha, um autómato que fazia o que parecia ser o esperado, sem uma conexão efectiva com a realidade.

Não quis que ele percebesse e me achasse doida. Ou fingida. Sabia apenas que tinha de me libertar e terminar. E que teria de ser tão eficaz que ele nunca suspeitasse de nada, e apenas acatasse a decisão sem contestar. A única maneira que encontrei para conseguir isso foi dizer−lhe uma parte da verdade e não a verdade toda – que era absurda e incompreensível, digna de ser tratada num divã de psicanalista, cria eu.

Disse-lhe simples e categoricamente que já não gostava dele.

Parti-lhe o coração, portanto. Ainda guardo numa secção oculta das recordações desse tempo, a que gosto de chamar Secção auto-depreciativa dos amargos arrependimentos, a visão do seu rosto triste, chocado e confuso, com as lágrimas a abeirarem-se do parapeito da suas janelas oculares. Aquele azul celeste enevoou-se, cheio de mágoa e incompreensão.

A verdade. A verdade é sempre fodida. Principalmente quando não é a verdade certa. Eu sentia que, de facto, já não gostava dele. Sentia que no meu peito havia uma obstrução qualquer e que o meu coração não estava capaz de bombear os sentimentos certos. Era um problema de circulação que eu estupidamente achei que se resolvia deitando fora o oxigénio. Ou algo assim, as minhas analogias são sempre uma merda, eu sei.

Contava respirar melhor e voltar a sentir-me Eu na minha pele. Mas surpresa das surpresas, apenas logrei ficar mais distante de mim, e agora de todos à minha volta também. Passei semanas sem sentir fosse o que fosse.

Até que um dia os vi. À beira do campo de basquete. O meu super-homem e a rapariga mais popular da escola. Recortados contra a luz do sol poente, a beijarem-se. Uma estampa digna de um filme, daqueles que perduram no olhar do espectador por serem tão cinematográficos, passe a estúpida redundância. E passem os dois, estúpidos também, e o estúpido cinema, e filmes, e o estúpido do amor mais os seus estúpidos beijos, e a estúpida da dor avassaladora que me rasgava o coração em dois, e por dentro dessas feridas entravam estúpidos e à bruta todos os sentimentos e mais alguns de todo o estúpido mundo!

Saí dali a correr e só parei em casa, onde irrompi pelo corredor até poder mergulhar no abrigo nuclear do meu quarto. Porque aquela dor toda só podia ser uma ogiva a rebentar no meu peito.

Aprendi sobre mim, e também sobre o amor, e o medo que temos dele. O medo que temos de amar, que faz, por vezes, com que o que sentimos se anestesie de tal forma que cremos que não existe lá nada – naquele peito onde ainda há pouco todas as emoções se atropelavam umas às outras, cheias de pressa e coisas para fazer. E cremos mesmo que o peito ficou vazio, que nós estamos diferentes daquele estado prévio de insana paixão, ao ponto de quase nem sabermos quem de facto devemos ser.

Sabia que tinha feito asneira da grossa, e agora era tarde para corrigir o mal feito. “Agora come e cala” – pensei, enquanto as lágrimas me corriam a jorros quentes pela cara abaixo.

Latejava-me na mente a advertência: nunca mais te precipites. Nem a decidir que amas, nem a decidir que não amas. Dá tempo e absorve o que houver para sentir ao máximo.

A minha consciência estava a tentar entrar em modo de aprendizagem. O meu coração mandou−a foder, e continuou a chorar. A dor de corno é para carpir toda até ao fim.

Lição aprendida? Nem por sombras! Senão este deprimente relato sobre a minha vida amorosa terminava já aqui.

Mas creio que é preciso adicionar mais informação prévia – potencialmente esclarecedora – sobre as minhas origens: pais, família, traumas de infância, etc. Qualquer coisa mais perto da ancestralidade da minha tortuosa relação com o amor.

Abramos, pois, um parêntesis.

Parêntesis

A minha mãe morreu quando eu tinha sete anos.

Tudo o que sei sobre ser mulher, aprendi sozinha. Tendo crescido numa casa cheia de homens, é de admirar que eu tenha resultado tão bem, apesar de tudo. Apesar das probabilidades estarem todas contra mim. Apesar de ter crescido entre o chauvinismo mais repelente e o paternalismo mais protector. Ou às tantas, mais por causa do que apesar disso tudo.

O meu pai adorava a minha mãe literalmente até à medula, que doou, juntamente com o sangue e plaquetas e mais o que houvesse no seu corpo para doar a quem sofre e está doente, como se ao salvar essas pessoas de alguma maneira a pudesse salvar também.

Manteve-se tão saudável quanto pôde – enquanto pôde – porque lho prometeu a ela. Por mim. Porque era eu que iria sentir mais a sua falta. “Mesmo que ela ainda não o saiba”, disse-lhe ela, já sem pinga de sangue nos tóxicos que lhe corriam nas veias, e sem um fio de cabelo na cabeça, o rosto a fundir-se na brancura da almofada de hospital, enquanto ele acenava que sim a tudo, segurando a mão dela, quase inerte, tão fria na sua.

Quando ela morreu, ninguém chorou à vista de ninguém. Pelo menos eu não me lembro de ver nenhum deles chorar. Nem me lembro bem se eu chorei ou não, mas devo ter chorado. Tinha só sete anos, mas devo ter chorado, não? Que criança de sete anos não chora pela mãe, se ela lhe falta?

Havia fotos dela por toda a casa. O meu pai fez questão disso, para que nenhum de nós a esquecesse, principalmente eu, que era a mais nova, e a única mulher da casa. Era imprescindível que eu crescesse com outro rosto feminino, ainda que mudo e estático numa moldura.

Sinceramente, acho que ela fez mais falta aos homens do que a mim. Se ela não tivesse morrido, talvez os meus irmãos não se tivessem tornado nos exemplares energúmenos, saídos directamente do Paleolítico, que vieram a ser. Talvez – mas não é certo que a influência dela pudesse ter sido poderosa o suficiente para que aqueles australopitecos conseguissem chegar a homo sapiens sapiens.

Se ela não tivesse morrido, talvez o meu pai não tivesse focado tanto a sua atenção em mim, de tal maneira que aqueles três imbecis teriam tido outra hipótese que a de crescerem unicamente entregues às suas exíguas capacidades intelectuais. É quase um milagre da natureza que eles tenham conseguido sobreviver e chegarem à idade adulta! Quando penso nisto, imagino sempre um David Attenborough a observá-los, assombrado: “Fascinating creatures!”.

Sempre foi assim, o meu pai preocupava-se fundamentalmente comigo. Eu era o centro das suas ralações mais fundas e prementes. A causa de o sono lhe fugir à noite. Tudo e todos à volta, vinham depois.

O meu pai protegia-me de tudo. E encorajava-me a tudo, também, um tanto incongruentemente.

Dizia-me que eu era capaz de tudo o que eu quisesse, capaz de alcançar tudo a que a minha vontade aspirasse, mas depois não me deixava fazer nada sem me vigiar severamente, sem ser a pesada sombra do mais leve passo que eu dava.

À medida que me fui tornando mais mulher e menos criança, as suas paradoxais formas de atenção foram tornando-se mais obcecadas também. Ao ponto de ordenar aos três estarolas que, na sua ausência, tomassem conta de mim. O que para eles foi como receberem um livre-conduto para me vigiarem e controlarem até aos mínimos movimentos, dando largas ao seu, ainda imberbe, porém já notório machismo.

Até sair de casa depois de adulta, eu vivi como um animalzinho de estimação, que uns cuidam e mimam, apertando no colo, e outros pontapeiam e oprimem, quando os primeiros não estão a olhar. Acarinhada até ao sufoco ou melindrada até à injúria. Não conheci meio termo.

 

Lúcia ao contrário - excerto 7 [Reel]

 

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