O Pai está atrasado [repost]
Histórias de Uma Mente Fragmentada
Março 19, 2024
São quase oito horas da noite, chove e faz o friozinho costumeiro deste Outono tardio. Bato com os pés gelados no chão, à porta do Grande Hotel, enquanto espero por ti. Atrasado. Como sempre.
Combinas as coisas sempre à última da hora, obrigas-me a cancelar compromissos e a refazer planos, e tudo para, no fim, chegares atrasado! Típico! Que coisa, Pai, mais parece que eu é que sou a mãe e tu o filho!
Olho para o relógio, pela vigésima vez em meia hora. Olho em volta, tento perceber se és tu o vulto que se aproxima, a correr, sob um enorme guarda-chuva. Não és. Raios te partam! Estou farta de estar à tua espera! Ainda por cima, está um frio de rachar!
Ouço um bulício de vozes atrás de mim, vindo de dentro do hotel; volto-me e vejo, através da enorme porta envidraçada, um grupo de empresários com cartões de identificação pendurados ao peito. Imagino que estejam a sair de alguma sala de conferências. Este hotel está sempre a bulir com este tipo de eventos.
No meio dessa pequena multidão formalmente engravatada, reparo numa silhueta familiar que a atravessa em direcção ao elevador central. És tu! Mas que raio estás tu a fazer aí dentro? Tínhamos combinado à porta! Sempre o mesmo! Apresso-me a entrar antes que te perca de vista.
– Pai! Pai! Espera! Estou aqui!
Tento chamar-te e acenar, mas tu não me vês. Tento atravessar a multidão – aparentemente crescente – destes homens de negócios, mas eles surgem de todos os lados, bloqueando todas as passagens. Esforço-me para me desviar deles e alcançar o elevador onde estás prestes a entrar – sabe Deus porquê, não imagino o que poderás ter tu a fazer nos pisos superiores do hotel! Estás a ficar taralhouco, é o que é!
Quando finalmente consigo emergir desta miríade de fatos e gravatas ambulantes, vejo que a porta do maldito elevador está quase a fechar-se. Merda! E agora sei lá para onde vais tu a seguir!
Grito alto «segurem o elevador!», mas ninguém me liga nenhuma e, quando finalmente o alcanço, as portas já se fecharam. Dou-lhes um murro e vocifero a minha frustração num rol de palavrões mal murmurados. Os rostos à minha volta parecem tão indignados quanto eu.
– Que gente! Que falta de educação, ninguém segurou o elevador! – dirijo-me a todos ali presentes e a ninguém em particular, talvez à humanidade educada obviamente em vias de extinção!
Recuo lentamente sem saber muito bem o que fazer a seguir, e, quando me volto, choco com um indivíduo – mais um engravatado – e quase caímos os dois ao chão. Ele tenta segurar-se ao mesmo tempo que me afasta, como se eu tivesse alguma doença contagiosa! Eu, em desequilíbrio evidente, tento amparar-me no braço com que me empurra, e, inevitavelmente, aterro de joelhos no chão, enquanto este desprezível fulano se tenta desembaraçar de mim, lançando-me um olhar de arrogante aversão senão mesmo repulsa! Grande lata! Realmente, já não há gente educada e cortês!
– Obrigadinha, cabrão! – digo-lhe em voz alta, enquanto o vejo a afastar-se daquele incidente embaraçoso como quem foge de um leproso! Os rostos parados à minha volta parecem estar surpreendidos com o sucedido, embora ninguém esboce o gesto atencioso de me ajudar a levantar.
– Já viram isto? É com cada idiota mal-educado! A lata de algumas pessoas…
Desisto de falar para este público indiferente; de facto, ninguém parece importar-se em ouvir, quanto mais ajudar uma estranha.
Porra! Logo hoje me havia de ter lembrado de usar saia travada e saltos altos! Tudo porque queria estar apresentável para jantar com o meu querido Pai no requintado Grande Hotel! Para a próxima, te garanto, não me vou dar a este trabalho, venho mesmo de sapatilhas e com os jeans que detestas! “Uma menina respeitável tem de se apresentar de forma respeitável” – dizes sempre. Pois eu digo, um Pai respeitável chega a horas!
Levanto-me devagar e com esforço, tentando desesperadamente não torcer um tornozelo à conta dos malditos saltos. Sacudo a saia, pego na minha mala e olho em volta, tentando descortinar o que vou eu fazer agora.
Eis senão quando, dentre a multidão empresarial que subitamente se dispersa, te vejo a caminhar descontraidamente em direcção ao lobby de entrada.
– Mas que raio? Ainda agora te vi no eleva… – apercebo-me que estou a falar sozinha e em voz demasiado alta para passar despercebida. Apresso-me novamente em alcançar-te, tão depressa quanto a estúpida saia e os cretinos tacões mo permitem!
Passo pelos cinzentos cavalheiros formais que ainda restam, cruzo-me com um grupo familiar de turistas japoneses, faço uma revienga digna do maior dos craques de futebol – melhor ainda até, queria vê-los jogar de saltos altos e saia travada! – ao desviar-me de um miúdo a correr, surgido sabe Deus de onde! Quase perco o equilíbrio de novo, mas num derradeiro e ofegante esforço, volto a encarrapitar-me nos saltos!
– Firme… ok! Continuo! – posso falar alto à vontade, todos aqui parecem mais ocupados em não me ouvir e em não me ver.
Avanço apressadamente para a porta de entrada. Olho à volta. Não te vejo em lado algum. Nada. Ninguém. Nem sequer um único automóvel.
Apercebo-me que a chuva parou e o frio amenizou. Já não há vento e, apesar do avançado da hora, até nem sequer está tão escuro.
Sinto o leve toque de uma mão delicada no meu braço. Olho o rosto de sorriso beatífico ao meu lado.
– Pronta para entrar? – diz-me ela, agarrando suavemente o meu braço.
– Desculpe, mas ainda não posso. Estou à espera do meu Pai. Ficamos de jantar juntos, hoje. Claro que está atrasado, como sempre, mas já deve estar mesmo, mesmo a chegar! Já não deve tardar…
– Então? Já se esqueceu? Sabe bem que isso não é possível, minha querida. Vá, vamos lá entrar, antes que o jantar arrefeça.
Olho à minha volta como se olhasse para dentro de mim própria. Tu não estás atrasado. Tu nunca mais poderás vir. Lembro, aos poucos, os últimos minutos da tua vida. Da minha vida, como ela era antes.
Deixo-me levar por estas mãos cuidadosas que me guiam de volta ao interior. Já não está aqui ninguém, e o caminho iluminado pelos parcos candeeiros de tecto indicam o percurso até à sala de refeições.
Afinal, já é hora de jantar e hoje a sobremesa é arroz doce. A tua preferida…
Ao meu Pai.