A hipótese da amizade
Quotidianos Paralelos
Março 15, 2024
Eu e a Júlia não tivemos uma verdadeira amizade – apenas a hipótese de uma, que ambas desperdiçámos, em igual e estúpida medida. Porque as amizades que o são mesmo, nunca chegam a hipóteses perdidas, mas a oportunidades enfim encontradas.
Não sabíamos o que já devíamos ter aprendido por esta – aquela – altura: que estamos sós. Nós, as mulheres, estamos todas sós. A única forma de o não estarmos, verdadeiramente, é termo-nos umas às outras. É estarmos juntas.
A vida não se suporta de outra maneira. Não se Vive, de outra maneira – outra maneira é só sobrevivência. E algumas extemporâneas, ainda que possivelmente felizes, distracções...
Sobrevivemos às dores: habituamo-nos a elas até já fazerem parte do nosso corpo.
Sobrevivemos aos filhos: desde que os fazemos, desde que os parimos, até nos deixarem – alguns para sempre.
Sobrevivemos aos homens: desde o pai, querido ou tirano, que mima ou agride; desde o primeiro amor falhado, até ao último, malquerente ou mal-amado.
Sozinhas, sobrevivemos. Juntas, aprendemos que a Vida é outra coisa e tem outros nomes.
Outros nomes que não os do costume: dor, desamor, perda, desesperança.
Juntas sabemos que viver é outra coisa: cumplicidade, compreensão, riso, perseverança.
Júlia e eu podíamos ter Vivido. Tivemos nas mãos a hipótese de aprendermos, juntas, a Viver.
Mas as nossas mãos desuniram-se, caindo flácidas, fracas, inertes e distantes.
Ah, Júlia. Vou ser velha, um dia, e pensar em ti. Quando morrer, vou lembrar-me de ti. E da hipótese que deixámos fugir, por entre os dedos toscos das nossas teimosias. Porque hão-de estas teimarem sempre em ser mais importantes que os afectos?
Vínhamos de percursos tão diferentes, mas com tão vizinhas emoções e coincidentes efeitos, que foi impossível não nos aproximarmos de imediato.
O meu pai matou-se, porque era infeliz em demasia para suportar a banal rotina familiar; o da Júlia maltratou-a, porque era demasiado alcoólico para suportar a familiar banalidade da sua rotina.
Eu nunca consegui ter filhos; ela teve três e perdeu-os a todos.
Eu casei e divorciei-me; Júlia nunca casou, mas ficou viúva de amor, vezes sem conta.
Júlia ficou doente, e eu tratei dela. Eu fiquei triste, e ela tratou de mim. E era tudo a mesma coisa. Os gestos, os cuidados, os conselhos, todos embalados nas nossas infinitas conversas, desembrulhados conforme as necessidades.
Conversávamos pelas tardes primaveris adentro, e pelas horas nocturnas afora. Todos os meios nos eram práticos e nenhum contrariava ou comprometia o linear fluir da nossa contínua conversa: acotoveladas à mesa de um qualquer café; ao telefone em alta-voz, à hora de fazer o jantar; com os airphones enfiados nos ouvidos, às voltas no supermercado.
As conversas versavam tudo o que era importante ou banal, tudo o que era banal e por isso importante.
Podiam ser sobre cinema – “Já viste o filme da Barbie? Não, e tu? Também não. Queres ir ver. Nem por isso. Eu também não. Vamos amanhã? Pode ser.” –, ou sexo – “Quando foi a última vez que fizeste? Há dois anos, 5 meses, quatro dias e três horas, e tu? Ontem. Vaca, com quem?! Com ninguém... Oh, isso não conta! Ah, então... anteontem. Vaca.” –; ou religião – “Acreditas em Deus? Claro, e tu? Eu não, deus me livre de crendices!”
Um dia, à espera de continuar a conversa, tu tinhas bloqueado o meu nome, desbloqueado o silêncio, e nunca mais te vi nem te ouvi. Nem o choro, nem o riso, nem as confidências inoportunas, nem os segredos quase esquecidos.
Quando começou o silêncio, entre nós, quando chegou ele, sacana e sorrateiro, que eu não dei por nada? Quando foi que eu te fiz fechar a tua porta? Quando foi que eu desisti de lhe bater? Quando foi que deixaste de querer entrar na minha?
Ah, Júlia! Cem anos passem entre a nossa solidão de uma da outra, que eu vou lembrar–te sempre, que vou ter sempre o mesmo gosto frio e acre na boca das recordações, que vou sempre pensar nos quandos e nos comos e nos porquês, que vou saber como é triste nunca mais poder esquecer as hipóteses perdidas da vida.
Perdemos as duas, Júlia. Perdemos e não nos vamos encontrar mais.