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Ana Pinto

Blog Literário

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Lúcia ao contrário (excerto 11)

Junho 24, 2025

Super Mulher.jpg

Chego à conclusão que eu não sou ‘Mulher’. Não, não é uma epifania sobre a minha identidade de género. É mais uma percepção da minha incompetência de género!

Eu não faço isto bem, isto de ser Mulher. Às mulheres à minha volta só lhes falta a capa e voarem para serem heroínas tão ou mais fantásticas que as dos filmes-pipoca.

Estudaram, trabalharam para poderem estudar mais, e, algumas, até trabalharam durante todo o tempo de estudo.

Conheceram meia-dúzia de homens até encontrarem o tal (algumas nem precisaram de tantos), casaram ou juntaram os trapinhos. Foram felizes até hoje, ou desfizeram o sonho numa separação dolorosa, mas necessária. Com o tal, ou o que parecia sê-lo, tiveram filhos, cuidaram deles sozinhas, entre fraldas, amamentação, quilos a perder o mais rapidamente possível, sobreviveram à depressão pós-parto, voltaram ao trabalho de mãos vazias e coração cheio de saudades da criaturinha que tiveram que entregar a estranhos, enfrentando o desdém dos colegas (e de algumas colegas também!), que agem como se elas tivessem regressado de uma viagem de férias às Maldivas.

Algumas, viveram a tristeza imensa de não poderem engravidar, outras perderam bebés, aos quais, mesmo sem conhecerem o rosto, já sonhavam um futuro. Outras atravessaram o longo corredor do inferno da violência, quando o amor lhes falhou, e saíram do outro lado devastadas, mas ainda inteiras o suficiente, ainda com forças suficientes dentro do peito para voltaram a acreditar no amor e que ele existe.

Pelo meio disto tudo, são óptimas cozinheiras, têm a casa impecável, são exímias no seu trabalho, e lutam com consistência e perseverança contra esse ser maléfico que habita em todas as balanças. No fim do dia, ainda têm tempo para consolar as amigas e escutar com sinceridade os seus problemas, enquanto tomam um copo de vinho branco e fazem uma máscara hidratante.

Eu não sou nada disto. Nem remotamente. Estudei sempre apenas o indispensável para me safar nos exames, quer na escola, quer na faculdade que o meu paizinho me pagou. Não sou muito boa no meu trabalho, nem tenho ambições de o ser.

Não consigo, por mais que tente, acertar nesta coisa rara e estúpida do amor, não tenho qualquer interesse em ser mãe (deus nos livre, já me imaginaram? A CPCJ tirava-me logo a criança!), nem sequer sou muito fã de bebés. Eu já tenho dificuldade em tomar conta de mim própria, quanto mais ser responsável por um ser que se baba, que chora imenso, que só come, dorme, e produz dejectos inconcebíveis em quantidade para uma criatura tão diminuta. Não percebo o encanto, amigas. Se os filhos já viessem com idade de conduzir e votar, para irem à vidinha deles, ainda pensava duas vezes, mas isso por certo traria danos inimagináveis ao pipi. Mais inimagináveis que os que já acontecem de facto.

Não sei cozinhar, nem sequer estrelar um ovo – queimo-me sempre no estupor do óleo que respinga, e a gema rebenta sempre! Graças aos céus, vivo na gloriosa época das entregas ao domicílio, à distância de um clique digital! De facto, é só mesmo para isto que eu trabalho – para poder ter internet para poder encomendar comida.

A minha casa é mais vazia que um museu de arte moderna minimalista, porque ter muitas tralhas e tarecos implica limpar, organizar e decorar, e eu não tenho a mínima destreza para limpezas nem o menor sentido estético. Aliás, para jantar pizza no sofá, qualquer um mais baratinho do Ikea serve – as almofadas só lá estão estrategicamente colocadas para tapar as nódoas, não é por disposição decorativa.

Evidentemente, o meu peso é um constante ioiô, porque só como porcarias pré-feitas e bebo, muito provavelmente, a um nível de peri-alcoolismo.

E queixo-me. Queixo-me de tudo, constantemente. Elas, as ‘Mulheres’, deslizam pelo trauma incessante dos dias com um sorriso pleno nos lábios bem pintados, sem soltarem um queixume. No máximo, um displicente “é a vida, que se há-de fazer? Bola prá frente, amiga!”. E lá seguem elas, em direcção ao sol poente, cavalgando placidamente as suas mágoas vencidas, ignorando as dores de costas e os fogachos, com um cabelo impecável.

Penso muitas vezes que sou assim, este trambolho decepcionante de feminilidade incompetente, porque cresci sem mãe. Mas não tenho a certeza de que isso seja inteiramente verdade. Não sei se até ela, a minha mãe, teria sido capaz de pegar nesta amostra deficitária e torná-la numa Mulher, na plena e heróica acepção da palavra com M maiúsculo.

Heroínas. São todas heroínas, sem tirar nem pôr. Eu nem sequer chego a vilão! Sou só o transeunte amorfo, cinzento, e indistinto, que grita no meio da multidão, em êxtase: “O que é aquilo? Um avião? Ah! É a Rosa, a Clara, ou a Filomena, são as super-Mulheres!”. Ou antes, as Mulheres, que prefixar “super” é redundância.

Para haver o mínimo de justiça, eu deveria ter nascido lésbica. Problemas 70% resolvidos! Se eu gostasse de mulheres, tinha muitas mais probabilidades de acertar num bom partido, do que perder o meu tempo em apostas furadas no sexo oposto! Claro que assim também haveria altas probabilidades de ficar sozinha na mesma, porque que Mulher, digna desse magnífico epíteto, iria querer ficar comigo? Condenada à solidão eterna, de qualquer das formas! (Vêem? lá estou eu a queixar-me!)

Não sei o que sou; bicho híbrido, sucedâneo de mulher da Temu, aberração da natureza humana, chamem-me o que quiserem, e colem-me a etiqueta na testa. Seja o que o que for, é o que há. Aqui estou eu, a existir. O mundo que se aguente: eu e a minha sofrível mediania de género estamos aqui para ficar!

 

Nota: este excerto faz parte do meu novo romance ainda em produção. Todos os excertos deste romance aqui publicados não estão por ordem nem foram revistos.

Lê mais excertos aqui!

«Lúcia ao contrário» - excerto 11 Reel

 

 

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