Não gosto do Natal!
- Conto -
Dezembro 17, 2024
Não gosto do Natal! Pronto. Já o disse. Admito agora o que calo há anos. E faço-o em segredo – se me obrigarem a repetir, nego tudo!
Mas esta é a triste verdade – não gosto mesmo nada do Natal, e nunca gostei. Não, não sou uma daquelas pessoas que sofreram um natalício desgosto de amor, nem ninguém me morreu nesta época. Nunca me aconteceu nada mais ou menos atroz que me deixasse indelevelmente traumatizado. Não. Nada. Nadinha mesmo. É só que não gosto e pronto.
Em minha defesa, tão-pouco aprecio a Páscoa, ou o dia de São Valentim, ou qualquer outro evento do género. Acho que, às tantas, embirro é com datas marcadas no calendário para se ser feliz.
A felicidade não devia carecer de dias marcados. Sim, acho que é mesmo disso que se trata: não tenho nada contra o Natal em particular, apenas contra as datas festivas em geral! Vêem? Até nem é assim tão mau!
Contudo, nunca me neguei a celebrá-lo, e sempre pus uma cara minimamente alegre, Deus sabendo o quanto me estava a custar fazê-lo...
Nem mesmo em criança apreciava a alegria exacerbada e ultra decorada da quadra. Não percebia porque se havia de colocar tantas fitinhas, bolinhas e luzinhas a piscar numa árvore arrancada do seu solo – só para a deitar no lixo dali a umas semanas. Não tinha sido melhor deixá-la estar sossegada no seu canto florestal? E depois, quando veio a moda das árvores de plástico? Eram – e são – ainda piores! Digam lá o que disserem, a mim parecem-me todas escovilhões de piaçaba! Já para não falar dos horrendos pais-natais espalhados pela casa, todos com uma palerma expressão bonacheirona na cara!
Admito que os presentes até tinham alguma piada. Mas para demorava-se tanto tempo à espera do momento de os abrir, e a lixarada de fitas e papel de embrulho que jazem, no fim, no chão da sala... O meu TOC não suportava tamanha confusão!
Para quê tanto folclore? Não seria melhor oferecerem-se os presentes logo, sem embrulhos nem desperdícios? Não seria melhor cada um festejar na tranquilidade que mais lhe apetecesse, sem música foleira cheia de sons de guizos e melodias delicodoces como pano de fundo? Não seria mais apetecível o sossego de um bom livro na cama, ou um filme no sofá? Não seria melhor um chazinho, ou na loucura, um chocolate quente, vá, com umas belas torradinhas, em vez de um manjar cheio de calorias que levamos o resto do ano a tentar perder? Palavra de honra, que não entendo.
Mas eu nunca me queixei, nem uma só vez esbocei um esgar de descontentamento que fosse, nem em criança, nem na adolescência, nem hoje, já adulto. Tudo por causa dela: a minha mãe.
A minha mãe adorava o Natal, desculpem, deixem-me corrigir a falta de eloquência, ela ADORAVA MESMO MUITO O NATAL! Vocês não estão bem a ver a devoção insana que aquela mulher dedicava à época natalícia! Devia ter sido estudada cientificamente!
A minha mãe era, no resto do ano, uma pessoa regular e moderada nas suas manifestações de alegria hodiernas. Nem demasiado alegre nem demasiado maldisposta. Sóbria. Mas no Natal, transfigurava-se completamente! Ela e a casa! E todos nós, por arrasto!
Decorava a casa de alto a baixo, não havia divisão menos importante para receber um qualquer enfeite – eu sempre me questionei para que servia ter sininhos dourados sobre o autoclismo... Passava dias na cozinha, a preparar todo um banquete medieval, cheio de pratos elaborados, com requintadas apresentações. O seu ex-libris, o peru, ou melhor, o “Real Peru de Natal”, como ela o baptizou, ainda hoje luz na memória de quem teve o privilégio de o provar, mas acima de tudo de o ver, porque era uma obra-prima de sofisticação culinária, com guarnições sempre diferentes e cada vez mais ousadas a cada ano. Comprava os presentes com meses de antecedência, escolhendo-os com esmero para cada um de nós, embrulhando-os a preceito, com tal arte que faria inveja ao mais hábil dos lojistas!
Nunca tive coragem para lhe dizer fosse o que fosse que pudesse contrariar ou sequer beliscar essa exultante alegria que a enchia nesta quadra. Como poderia? Era como se, depois de cumpridos e executados todos os preparativos, ela deixasse a sua pele de adulta de lado, e voltasse, magicamente, a ser criança!
Quando decidi casar, a primeira coisa que ela me perguntou foi:
– A tua noiva gosta do Natal?
Sim. Gostava. Gosta. Para mal dos meus eternos pecados, gosta muito, também! Aliás, acho que o convívio com a minha mãe fez a Sofia gostar ainda mais do Natal agora do que em criança! Foi como se tivesse levado uma injecção da minha mãe, uma espécie de vacina doutrinal, que, em vez de prevenir o contágio, produziu a infecção! Eu, por mais que seja repetidamente inoculado, fui sempre imune...
Quando os netos vieram, o êxtase natalino dela como que triplicou! Seria de esperar que assim fosse, não é? Pois é. E os meus três filhos, aparentemente, não herdaram a imunidade do pai... (suspiro)... A minha última esperança de cumplicidade ruiu por terra.
Hoje, continuo a sua tradição de felicidade festiva. Com a coordenação preciosa e fundamental da Sofia, claro, que eu, para além de por sininhos sobre o autoclismo, pouco mais sei fazer.
Já não me incomoda, sinceramente. Até consigo sorrir com genuína vontade, em vez de lacrimejar penosamente por dentro. Não me importa sequer que esta felicidade venha com data marcada no calendário. O que importa, realmente, é a memória do sorriso dela, replicado nos rostos dos meus filhos, e um dia, que já não estará muito distante, nos rostos dos filhos deles.
Portanto, nem sob ameaça alguma vez admitirei que não gosto do Natal. Só não me obriguem a cantar canções típicas – traço aí o meu limite.
Para lerem mais contos de Natal de outros bloggers, sigam o perfil da Isabel Silva, e visitem a sua página!