Pagar à tristeza
– Memória –
Outubro 31, 2025
A tristeza tomou conta dela.
Vivera 89 anos, perdera o marido havia 12; aos 30, perdera um filho de dois, e aos 44 outro que não chegara a nascer.
Cuidou dos dois progenitores até se despedirem deste mundo, com menos de um mês de intervalo. Ela tinha 44, e, além dos pais desaparecidos nos confins do Além, tinha também um ventre vazio, a supurar placenta inútil e sonhos perdidos.
Criou os filhos que lhe sobraram, 3, que foi a conta que Deus fez, sem nunca esquecer os outros dois que lhe faltaram – mas sobraram à matemática divina.
Nunca sucumbiu às amarguras agrestes que a vida lhe trouxe. Pagava à tristeza justamente o que lhe era devido pelo infortúnio da ocasião, e nem uma lágrima a mais. Havia mais vida para continuar a viver. Havia mais que fazer do que deixar-se cobrar por dores tristes. «Tristezas não pagam dívidas» – rezava sempre para si, baixinho, enquanto afogava as lágrimas no esquecimento dos afazeres quotidianos.
Seguira assim toda a vida, sem sentir que devesse fosse o que fosse à tristeza, que não tivesse já saldado com o destino.
Mas fora agora, naquele preciso momento que o destino escolhera para lhe levar o companheiro fiel de todas as suas horas, das mais vazias – quase todas – às mais cheias – ainda algumas – que a tristeza a invadira e a conquistara.
A tristeza chegara, inexorável, e, por fim, tomara conta dela. Viera cobrar a colecta em débito, e com juros de mora.
O cadáver minúsculo daquela criatura felpuda, que se aninhava, contente, no seu colo, diariamente, ali estava. Jazente, inerte, vazio da vida que lhe emprestara nos últimos 8 anos.
– Duram tão pouco...
As palavras da veterinária, de serviço a um Domingo (uma estagiária com certeza, a Dr.ª Adosinda jamais diria uma banalidade fria como aquela!), não encontraram eco na sua alma só.
Pela primeira vez, sentia-se mesmo só. Do consultório, regressaria a uma casa onde já ninguém a esperava.
Sim, claro, podia ligar aos filhos, ir visitar os netos. Iria fazê-lo, amanhã ou depois.
Mas por enquanto, apenas a solidão da casa totalmente vazia esperava por ela.
A solidão de uma casa apenas cheia de silêncio e fantasmas quietos – cansados como as folhas caídas do Outono.
Por fim, a tristeza venceu-a: dívida liquidada.
Morreu dois dias depois do gato.
